Auditoria na dívida seria mais eficaz para contas públicas do que ajuste fiscal
O governo federal iniciou o semestre com um série de
medidas voltadas a reconstituir sua base parlamentar, recuperar o
apoio de sua base social e aplacar a crise política marcada por uma
sucessão de derrotas no Congresso e de frustrações entre seu
eleitorado. O isolamento do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e a
reaproximação com movimentos sociais com compromisso de ouvi-los e
atender parte de suas reivindicações já conseguiram melhorar os
humores em torno do Palácio do Planalto.
Mas um dos principais fatores de mau humor
generalizado entre os setores progressistas da sociedade – o
rigoroso ajuste fiscal que já afeta a arrecadação do Tesouro e os
empregos – ainda não deu pistas de recuo. Nem Dilma, nem sua
equipe econômica dão sinais de disposição em encaminhar
reivindicações como a taxação de grandes fortunas, de remessas de
lucros para o exterior. Tampouco de rever a política de juros que
promove o aumento da dívida público. E muito menos em considerar
mexer nos critérios de constituição dessa dívida.
Segundo a organização Auditoria Cidadã da
Dívida, cerca de 70% do endividamento da União, hoje estimado
em R$ 3,6 trilhões, pode ser indevido. “E talvez até mais do que
isso. Não há referência precisa porque não temos todos os dados,
mas tem uma parte que a gente analisou e só esse item dos juros
sobre juros e atualização monetária indevida – essa questão de
pagamento dos juros com emissão de nova dívida, que é ilegal –
só esse item já daria 70% tranquilamente”, afirma a fundadora do
movimento Auditoria Cidadã da Dívida e auditora aposentada da
Receita Federal, Maria Lucia Fattorelli.
Lembrando que o artigo 167 da Constituição define
que não se pode pagar despesas correntes com dívidas, sendo que
juros são despesas correntes, Maria Lucia vê na postura
conservadora do governo, mantendo o modelo econômico que beneficia o
setor financeiro, um custo mais alto do que o custo político de
promover mudanças reais. “Eu acho que o custo atual é que é
altíssimo e para romper não seria de um dia para o outro, não
acredito nisso, mas esse processo começa por uma auditoria da dívida
e por rever a política monetária do BC. Começa também barrando
operações em paraísos fiscais. Por que até hoje se admite
operação com paraísos fiscais, quando se sabe que aquilo é uma
fraude”, indaga Maria Lucia.
Nesta entrevista à RBA,
a auditora que já aplicou seus conhecimentos para analisar as
dívidas da Grécia e do Equador, sendo que neste último houve uma
redução de 70% da dívida, protesta também contra os impostos mais
injustos que existem na estrutura tributária brasileira, como o
ICMS. “Ele é totalmente injusto, pois não obedece o princípio
constitucional da capacidade contributiva. Nós temos esse princípio
na Constituição. Ninguém deveria pagar um imposto que retira
recurso da sua própria condição de sobrevivência”, afirma em
referência ao caráter horizontal do imposto, que faz com que o rico
e o pobre sejam a mesma pessoa, enquanto contribuintes.
O que você achou do recuo do governo com o
superávit primário?
O ideal é realmente acabar com esse sacrifício.
Achei importante essa redução, porque não há condição de cortar
mais da saúde, da educação. E onde vai cortar mais? Tem de reduzir
mesmo essa meta e onde falta atacar é a conta dos juros, porque nós
temos um mesmo orçamento e a alíquota de juros, a Selic, subiu das
eleições para cá, de 11% para 14,25%. Não tem limite para o custo
da política monetária no Brasil.
Só a perda do Banco Central com a operações de
swap cambial (para regular o mercado de câmbio) este ano foi
de R$ 33 bilhões no primeiro semestre. E ainda querem cortar mais
gasto social para cumprir meta de superávit? Porque a arrecadação
caiu, a redução da meta foi uma decisão razoável.
Como você vê a crise que o país está
atravessando na área econômica?
O Brasil é um dos países mais ricos do mundo. Não
teria de estar nessa crise. Mas os juros são abusivos e nós estamos
pagando dívidas ilegais, ilegítimas. Já houve uma CPI da Dívida
que apurou tudo isso, e essas apurações não foram levadas adiante.
De tal forma que nossa base monetária (liquidez, recurso em
circulação) é muito baixa, no Brasil ela é pouco mais de 4%.
Nos Estados Unidos, Europa, Japão e China a base é quase 40%.
Aqui no Brasil se faz o contrário. Em vez de
aumentar a liquidez, o BC retira liquidez que vem dos bancos. Toda a
sobra de caixa do banco o BC enxuga e remunera ou entrega títulos da
dívida para o banco, pagando os maiores juros do mundo (a taxa
real, acima da inflação, está em torno de 5%), são as tais
operações de mercado aberto.
E por que a taxa de juros é tão alta?
Não tem justificativa técnica, nem política, nem
jurídica, nem econômica, é uma decisão de remunerar o setor
financeiro, graças ao poder que o setor financeiro exerce aqui,
porque financia todas as maiores campanhas políticas. Basta você
olhar no site do TSE os maiores financiadores de campanha, da Dilma e
do Aécio, foram os bancos.
O que o governo deveria fazer para encarar
essa ilegitimidade da dívida?
Em primeiro lugar tinha de fazer auditoria, porque o
que foi feito até o momento foi uma investigação parlamentar, e a
auditoria seria para separar essas partes ilegais e ilegítimas
porque é um absurdo continuar sacrificando o país para pagar uma
dívida ilegal, ilegitima, de fraude, porque até isso já foi
apurado. E, como está, o país fica amarrado, não tem recurso para
investir.
A ilegitimidade da dívida é uma questão do
atual governo ou um legado?
A parte ilegítima da dívida vem desde a década de
1970. Esses R$ 33 bilhões que o BC teve de perda neste primeiro
semestre de 2015, para cobrir diferença cambial para os bancos, são
pagos com os títulos da dívida. E eu pergunto: isso é dívida
legítima? Não entrou um recurso no país. Foi uma operação
financeira que não deveria ter sido feita. E por que foi feita?
Porque os bancos privados dominam toda a política monetária do BC.
O que explica o fato de o receituário
neoliberal dominar as economias no mundo?
É a fase que nós estamos vivendo, de um capitalismo
financeirizado, que vem desde a década de 1970. O poder financeiro é
que manda no mundo inteiro. Quando estourou a crise de 2008, ela se
instalou no setor financeiro. E os EUA e Europa injetaram trilhões
nos bancos. E agora os países estão em crise, cortando programas
sociais para atender o pagamento da dívida criada para salvar os
bancos. Não fosse isso, era para termos uma saúde e uma educação
públicas de excelente qualidade.
Seria viável romper com esse modelo?
Para romper não seria de um dia para o outro, não
acredito nisso, mas esse processo começaria por uma auditoria da
dívida e por rever a política monetária do BC. E também barrando
operações em paraísos fiscais. Por que até hoje se admite
operação com paraísos fiscais, quando se sabe que aquilo é uma
fraude?
Se começarem a ser tomadas algumas medidas, a coisa
começa a entrar nos eixos. Agora, deixam um milhão de ralos
abertos, não tem como. Na sétima economia mundial estão aí: 50
milhões de brasileiros vivendo de Bolsa Família.
Essa política monetária é irresponsável. A Lei de
Responsabilidade Fiscal não coloca nenhum limite para a política
monetária. Então, o BC pode gerar o prejuízo que for, que isso é
coberto com títulos da dívida pública. E nós vamos pagar essa
conta. Essa questão da responsabilidade monetária tem de ser
discutida, porque está provocando um alto custo no país.
Na atual estrutura tributária brasileira, um
imposto como o ICMS, que é horizontal, quer dizer, todos pagam
igualmente, independentemente se da classe baixa ou alta, é um
imposto injusto. Você pensa assim?
Ele é totalmente injusto, pois não obedece o
princípio constitucional da capacidade contributiva. Nós temos esse
princípio na Constituição. Ninguém deveria pagar um imposto que
retira recurso da sua própria condição de sobrevivência. E o que
é o ICMS?
Veja o exemplo de um pacote de macarrão. O miserável
que ganha umas moedas de esmola e vai no mercado comprar o macarrão
paga o mesmo tributo que o milionário que faz essa compra. E aqui no
Brasil mais de 60% da carga tributária provem de tributos que
incidem sobre o consumo. Além do ICMS, os tributos horizontais são
a Cofins, o IPI, enfim, tudo o que incide sobre o consumo. E o Levy
(Joaquim Levy, ministro da Fazenda) quer criar mais um. Ele
falou outro dia que a saída seria criar mais um imposto para o
consumo.
E por que o país não encara uma reforma
tributária para promover a justiça fiscal e mudar isso?
Em primeiro lugar, é o governo que deveria encarar o
desafio, porque com esse apoio haveria muito mais força. Mas isso
não muda porque é todo um conjunto. O modelo tributário, a
política monetária, a abertura de paraísos fiscais para os bancos,
tudo isso tem a ver com o tipo de modelo econômico. Tudo isso fica
dentro de uma coerência de um modelo voltado para a concentração
de renda e riqueza de um setor, que é o financeiro e o grande
empresariado.
Porque a política do BC é desse jeito, ou seja, de
recolher sobra de caixa em vez de deixar os bancos com essa sobra, o
que os obrigaria a baixar os juros?! Mas ai eles, bancos, vão ganhar
menos, então, tudo gira em torno de um modelo voltado para a
concentração de riqueza. Aí não tem espaço, por exemplo, para a
reforma agrária, que vai distribuir terra, mas o modelo é
contrário, é incentivar o latifúndio, a concentração de renda e
riqueza. A reforma tributária não é feita por causa da escolha
feita desde os anos 1970, desde o período da ditadura.
Podemos fazer uma lista de medidas justas: modificar
o ICMS, reduzir os juros, brecar operações com paraísos fiscais,
ser mais rigoroso nos julgamentos lá do Carf (Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais), e tudo isso está ao
contrário do que seria o correto, porque está tudo alimentando o
tal modelo de concentração de renda e riqueza e quem dirige
principalmente é o setor financeiro, que financia as campanhas e
está comandando a política mundial. É um sistema muito bem
integrado.
E a falta de transparência na apresentação
da dívida?
É quase impossível na forma que eles apresentam,
que é confusa, e essa falta de transparência é interessante para
eles, porque quanto mais gente consciente mais nós vamos reforçar a
tendência para as pessoas escolherem melhor seus representantes. E
aprenderem a reclamar mais, com determinadas coisas que são
noticiadas. Então, não interessa a esse modelo ter pessoas
conscientes, porque elas vão perceber a conta que estão pagando.
Juros contabilizado como amortização, é o
próprio governo o responsável por isso?
Sim, é o governo, com certeza.
E o que precisaria ser feito para combater a
corrupção?
A corrupção é outra engrenagem desse modelo de que
estamos falando. Ela é intrínseca ao modelo. Um modelo concentrador
de renda dessa forma já é corrupto em si. Quando o modelo coloca
uma carga tributária elevadíssima, embutida, não transparente até
em alimentos, o pobre, o miserável está lá pagando sem saber que é
contribuinte, isso já é um tipo de corrupção. O próprio modelo
sobrevive de corrupção.
Todas essas manobras que são feitas, todos os casos
que vêm à tona, eles interessam a esse modelo. Enquanto o povo, por
exemplo, neste momento está achando que o país não vai para a
frente por causa do mensalão e do petrolão – de fato são
problemas graves que têm de ser enfrentados e tem de determinar quem
são os corruptos, culpados e tudo o mais – essa corrupção não
pode servir de cortina de fumaça para impedir que as pessoas
enxerguem a verdadeira corrupção institucionalizada no modelo.
Num semestre se emprega R$ 33 bilhões para cobrir a
variação cambial. Isso é um tipo de corrupção institucionalizada
no modelo econômico. Para combater isso, só mesmo com muita
participação da sociedade e com muita transparência. Precisa muito
investimento em educação. E quando nosso povo receber educação
completa, de qualidade, e desenvolver os princípios éticos, muita
bandalheira vai parar de acontecer, porque as próprias pessoas não
vão admitir certas coisas, mas vão ser mais conscientes de suas
obrigações como cidadãos e a partir do momento que são mais
exigentes, cobram mais do governo, do poder público, de tudo ao seu
redor. É uma coisa que contagia.
Mas do jeito que estamos, com a educação degradada,
com exemplos de corrupção, isso também contagia. Aquele que tem um
alto cargo está roubando, então, aquelas pessoas que não receberam
uma boa educação e não têm princípios, acabam ficando
influenciadas também. Precisamos virar isso e investir pesadamente
em educação, completa, integral, não somente educação escolar ou
formal.
Na auditora que você fez no Equador, 70% da
dívida externa em títulos era ilegitima. No Brasil aconteceria algo
semelhante?
Sim, e talvez até mais do que isso. Não há
referência precisa porque não temos todos os dados, mas tem uma
parte que a gente analisou e só esse item dos juros sobre juros e
atualização monetária indevida, essa questão de pagamento dos
juros com emissão de nova dívida, que é ilegal, só esse item já
daria 70% tranquilamente. A dívida interna em títulos está em R$
3,6 trilhões. E a dívida externa é de US$ 550 bilhões.
O cálculo é estimado, não temos um cálculo
consolidado por falta ainda de dados, mas nessa estimativa, só esse
item da contabilização errada da dívida que está possibilitando
pagar juros com nova dívida, o que é ilegal, só esse item nós
estimamos em cerca de 70% da dívida da dívida interna.
Isso permitiria ampliar os programas sociais
de forma exponencial...
E mudaria essa subserviência, porque muito desse
modelo econômico que a gente discorda é imposto pela condição de
devedor, que é um refinanciamento em cima do outro. É ilegal porque
tem leis, súmula do Supremo Tribunal Federal, que diz que não se
pode cobrar juros sobre juros. Esse é um dado e o outro é o artigo
167 da Constituição que diz que não se pode pagar despesa corrente
com dívidas, e juros são despesas correntes.
E o que você espera da economia neste ano?
Nós estamos vendo que o país está definhando, em
processo de desindustrialização. E grande parte dos nossos recursos
que deveriam estar em investimentos geradores de empregos estão
sendo esterilizados para pagamento de juros de uma dívida em grande
parte ilegal. As políticas sociais muito equivocadas, cadê o
investimento efetivo em educação? E programas sociais que venham
junto com o Bolsa Família, porque ele sozinho acaba condenando as
pessoas a ficarem eternamente recebendo e não saírem dessa
condição. Teria de ter um programa social efetivo junto,
verificando porque essa pessoa está lá recebendo o Bolsa Família.
Por que que ela não consegue um trabalho, não consegue se inserir
no mercado? Então só um programa social efetivo e para isso precisa
de recurso.
E por que não tem recurso se somos o sétimo país
mais rico do mundo? Por causa do modelo adotado pelo BC de política
monetária restritiva. Um abuso, um absurdo. Quantos brasileiros são
empreendedores, têm ideias e invenções e não têm como alavancar
seu negócio porque os juros de mercado no país são mais de 300% ao
ano. Só louco para entrar nesses juros. E se entra, não tem como
sair.
Este ano, o gasto com juros vai ser ainda
maior?
Sim, o próprio orçamento que o governo enviou para
o congresso reserva R$ 1,3 trilhão para pagamento de juros, é perto
de 30% em cima do que foi gasto no ano passado (R$ 978 bilhões de
juros e amortizações), e exatamente reflete o que subiu na taxa
de juros. Ela estava em 11% e já está em 14,25% e hoje já tem
comentarista dizendo que deve subir para 14,5 em setembro.
O que você pensa sobre a operação Zelotes?
É esdrúxulo um conselho (Carf) que julga com
metade dos membros vindo do setor privado. Então, essa conformação
por si só gera um grande risco de corrupção. A corrupção maior
está sempre no setor privado. Aqueles casos da operação são de
empresas de poder financeiro que paga a corrupção.
Você tem alguma estimativa da sonegação no
país?
Tem um trabalho muito bom que foi feito pelo
Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), e
eles fizeram uma estimativa do volume sonegado. Eles calcularam um
indicador médio de corrupção da ordem de 8,44% do PIB. E a maior
sonegação está no ICMS, imposto de renda e contribuição
previdenciária. Nesses três, porque a média é 8,44%, mas nesses
três impostos o índice de sonegação chega a 10,4% do PIB, o que
representa R$ 500 bilhões por ano.
O quer você acha das mudanças no regimento
do Carf para torná-lo mais confiável?
Esse Carf, na minha opinião, teria de acabar. Já
existem outras duas instâncias administrativas, a primeira instância
é a Delegacia de Julgamentos, e a segunda é o Conselho de
Contribuintes. Esse Carf tem até estudos do nosso sindicato no
sentido de que ele deveria ser eliminado, principalmente por sua
composição, porque metade é do setor privado. Essa mudança de
regimento não adianta, na minha opinião.