A Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos
Por elaine tavares - jornalista
Começou
nesse dia 28, em Cuba, a segunda reunião da Celac, uma realização
até então inédita de união dos estados latino-americanos e
caribenhos. A proposta do encontro é discutir ações conjuntas que
possam ser defendidas por todos os envolvidos e que avancem na
consolidação da soberania dos povos, tal como instigou Hugo Chávez,
em dezembro de 2011, na instalação da Comunidade: “União, esse
caminho é o único caminho. Com suas variantes, com suas
diversidades. A unidade entre nossos povos, entre nossos estados,
nossas repúblicas, nossos governos. Aceitando, insisto, e
respeitando nossas diferenças. Mas, sem permitir que a intriga
vingue entre nós. Sem permitir que a cizânia venenosa venha
impedir, mais uma vez, o esforço unitário. Estou seguro de isso não
vai descarrilhar, que não vai triunfar a intriga que permitiu ao
monroísmo impor-se e sepultar bem fundo o projeto de Bolívar,
Morelos, Artigas, Juana Azurduy e Manuela Saenz”.
A
história da unidade
O sonho de uma integração latino-americana e caribenha
paradoxalmente foi gerado pelo invasor. Antes de 1492 – quando
Cristóvão Colombo aportou em Santo Domingo - o continente abrigava
inúmeros povos, alguns conformando gigantescos impérios. Há
notícias de que muitos desses povos se comunicavam, se visitavam,
intercambiavam mercadorias, e até guerreavam. E, talvez, por não
identificarem nenhum inimigo forâneo, não há, pelos menos até
agora, registros de que buscassem algum tipo de integração. Cada
povo conservava seus deuses, sua cultura, sua língua. Mas, os
“estranhos barbudos” que aportaram no Caribe mudaram toda a
maneira de ver o mundo que existia em Abya Yala.
O primeiro morador dessas terras a tomar consciência de
que havia um inimigo poderoso a exigir uma união das gentes foi o
cacique Hatuey, da etnia Taíno, que habitava a ilha de Quisqueya,
chamada de “A Espanhola” por Colombo, e depois de Santo Domingo.
Pois, Hatuey, observando a selvageria dos espanhóis decidiu
rebelar-se contra eles e uma de suas primeiras ações de
solidariedade com as demais gentes do continente foi remar até a
ilha de Guanahany (Cuba) para avisar os moradores sobre os invasores
e iniciar uma aliança. Segundo Bartolomé de las Casas, essa era a
fala do cacique taíno: "Nos
dizem esses tiranos que adoram a um deus de paz e igualdade, mas
usurpam nossas terras e nos fazem de escravos. Eles nos falam de uma
alma imortal, de suas recompensas e castigos eternos, mas roubam
nossos pertences, seduzem nossas mulheres, violam nossas filhas.
Incapazes de se igualarem a nós em valor, esses covardes se cobrem
com ferro que nossas armas não podem romper… Por isso temos de
atirá-los ao mar”.
E Hatuey fez a guerra
aos espanhóis, que o capturaram e o queimaram vivo. Contam que, na
fogueira, um padre perguntou se ele queria se converter. Hatuey
perguntou se, convertido ele iria ao céu cristão. – Sim,
respondeu o padre. E o cacique taino, cuspindo de nojo, replicou: -
Então não, prefiro o inferno, onde não encontrarei gente tão
cruel como vós.
Depois dele, muitos
outros povos se rebelaram contra a invasão, mas, derrotados,
sucumbiram a opressão e Abya Ayala virou uma grande colônia
pertencente aos reinados espanhol e português. Foi só em 1780 que,
a partir do grito de Tupac Amaru II e Tupac Katari, mais uma vez os
povos originários tentaram uma guerra – envolvendo aliança com
outras etnias - contra os espanhóis. Foi um momento memorável que
chegou a juntar milhares de índios em batalhas gigantescas. Mas,
também aí foram derrotados. Dez anos depois, Francisco de
Miranda, agora das fileiras criollas (espanhóis nascidos na
América) apresentou um plano no qual propunha juntar toda a América
espanhola numa espécie de confederação. Esse sonho de Miranda foi
levado a concretização por Simón Bolívar, nas lutas de
independência iniciadas em 1815. Desde a Jamaica, para onde fora
exilado, depois da primeira tentativa de libertar a Venezuela, que
não deu certo, Simón percebeu que a liberdade não poderia vir
isolada, numa única província. Era preciso uma integração e foi
aí que conclamou aos povos do continente: “Temos de formar uma só
nação, com um só vínculo, que una suas partes entre sí e com o
todo”. A Pátria Grande.
E foi com essa ideia
na cabeça que ele peleou por várias regiões da América até
conquistar a expulsão dos espanhóis em 1824. Em 1826 fez sua
primeria tentativa diplomática para garantir a integração das
províncias recém liberadas e convidou todos a um Congresso no
Panamá. Queria fundar ali uma confederação das repúblicas, a
Pátria Grande, enfim, buscando garantir, inclusive, a libertação
de Cuba e Porto Rico. Mas, Simón encontrou resistência entre os
seus próprios generais que, mordidos pela mosca do poder, não
queriam abrir mão de suas repúblicas. Foi traído nesse sonho e
acabou morto, fugindo de seus ex-aliados. Com ele, também
morreu a ideia de uma América integrada e unida. Até porque, no
norte, crescia o germe daquilo que mais tarde viria a ser outro foco
de opressão: o imperialismo dos Estados Unidos.
E foi a partir dos
Estados Unidos e seu projeto de dominação que nasceu o
Panamericanismo, a consolidação da proposta de Monroe: a América
para os americanos, e aqui, a América era, na verdade, a do Norte,
Central e do Sul. O bolivarianismo colocado “patas arriba”.
Para o governo dos EUA, a união dos países se dava na dominação
por um só: ele mesmo. Foi assim que a Primeira Conferência dos
Estados Americanos, realizada em 1889, na capital dos Estados Unidos,
já buscava impor aos governos latino-americanos um tribunal de
discussão territorial, relações de comércio unificadas e até uma
moeda de circulação regional, tudo coordenado pelos EUA. Sobre esse
evento, que cobriu como jornalista, o grande poeta cubano José Martí
escreveu: “Podem os Estados Unidos convidar a américa espanhola
para uma união sincera e útil? Convêm a américa espanhola uma
união econômica e política com os EUA?” Ele sabia que não.
Tanto que, mais tarde, conclamou seu povo à luta contra o monstro
que principiava a dominar tudo abaixo do Rio Bravo. E Martí não
ficou nas palavras, partiu para a luta armada, na qual caiu morto.
O século XX foi o
período de crescimento e expansão do império estadunidense,
consolidado justamente com a ideia de “união”. Foi assim que
nasceu, inclusive a Organização dos Estados Americanos, logo depois
da segunda grande guerra, sempre com a promessa de proteção e
ajuda. Assim, o sonho de Hatuey, Tupac, Miranda e Bolíviar
ia ficando cada vez mais longe. Uma dominação trocada por outra.
Nada de soberania, ou no máximo, uma soberania tutelada, na qual as
elites locais seguiam no poder, mas sob o comando dos EUA.
E a vida corria
tranquila para os Estados Unidos no seu projeto de tomar toda a Abya
Ayala para si. Não contavam com a bravura de alguns jovens cubanos
que, articulados com movimentos de resistência na ilha de Martí,
decidiram afrontar o domínio estadunidense fazendo explodir uma
revolução em pleno Caribe, então considerado como um quintal, um
espaço de festa e diversão para os ricos dos EUA. Desde as
montanhas de Sierrra Maestra, os “barbudos” impuseram uma derrota
espetacular aos Estados Unidos, liberando Cuba de uma ditatura e
abrindo novamente a caixa do sonho integracionista, tão decantado
pelo mentor de toda a luta: José Martí. Desde aí, 1959, essa
“rugosidade” no plano do império inspirou dezenas de lutas de
libertação numa América Latina que seguia dominada. Ainda assim,
apesar da resistência da ilha de Cuba e de uma série de movimentos
revolucionários que explodiram no continente, os Estados Unidos
conseguiram garantir a hegemonia política e econômica. A integração
proposta agora por Fidel, não conseguia se fazer. Os demais países
acabaram sucumbindo às ameças estadunidenses, impondo, inclusive,
um bloqueio a Cuba, que já dura mais de 60 anos. Nesse meio
tempo os EUA também garantiram governos amigos e de mão-dura em
praticamente todo o continente. E, devagar, também foi inculcando a
proposta de uma união de todos, mas sob a sua batuta. Assim, no
início dos anos 90 surge a proposta da ALCA (Área de Livre Comércio
das América), na qual haveria porteira aberta em todas as
fronteiras, ainda que só numa direção. Os Estados Unidos
comandariam e manteriam as suas porteiras bem fechadas, afinal, livre
comércio é bom para os outros.
Chávez e o
bolivarianismo insurgente
Mas num continente que
já finalizara – na maioria - sua libertação das ditaduras, os
movimentos sociais se levantaram firmes. Muitas foram as lutas, em
todos os países, contra essa proposta de neocolonialismo. E, no meio
dessa batalha que envolvia uma visão dominadora do processo de
integração, inclusive, reduzido a sua dimensão econômica, aparece
aquele que iria retomar as propostas de uma integração em outros
moldes, com soberania e com equidade: Hugo Chávez.
Aliado às lutas já
desencadeadas pelos movimentos sociais de todo o continente, ele se
integrou a batalha contra a Alca. E aí, não eram mais só os
“baderneiros” de sempre – como costumam chamar os lutadores
sociais. Era um estado livre e soberano que começava, na prática, a
atuar em consequência de um outro tipo de integração. Foi assim
que ele propôs a ALBA, para se contrapor ao projeto de dominação
dos Estados Unidos. A ALBA seria a Aliança Bolivariana para os Povos
de Nossa América. Não apenas trabalhando com elementos da economia,
mas garantindo a parceria política e as trocas culturais. Na esteira
dessa aliança Chávez propôs a PetroCaribe, um plano de cooperação
com os países empobrecidos do Caribe de troca de alimentos por
petróleo, a Telesul – uma televisão integradora da vida e da
cultura latino-americana, o Banco do Sul, para se contrapor ao FMI,
trabalhando de forma a garantir a equidade e a justiça nas relações
econômica. E assim, em 2005, ele mesmo, Chávez, foi a televisão
para dizer do seu modo peculiar: “La Alca se fue al carajo!” E
era verdade.
Logo em seguida,
outros países da América Latina começaram a eleger presidentes que
se alinhavam com as ideias de Chávez. Lula, no Brasil, Rafael
Correa, no Equador, Nestor Kirchner, na Argentina, Evo Morales, na
Bolívia. Com eles foi sendo consolidada outra vez a ideia de uma
integração aos moldes do que sonhara Bolívar. Encontros foram
acontecendo até que culminaram na criação da Unasul – União das
Nações Latino-Americanas, uma entidade autônoma sem a participação
dos Estados Unidos.
Mas a Unasul ainda era
um mecanismo de integração só das nações sul-americanas e era
preciso avançar mais, incluir o Caribe, o México. Assim em
fevereiro de 2010 foi criada a Comunidade dos Estados
Latino-Americanos e Caribenhos, com instalação em dezembro de 2011
na Venezuela, na realização de sua primeira reunião. Muitas coisas
começaram a mudar a partir daí. Cuba teve de ser incluída em
outros organismos, por conta da força de todos os países unidos e
vários planos de desenvolvimento passaram a ser traçados envolvendo
os países como um bloco. Mas, em 2012, quando a presidência do
órgão esteve com o Chile, a Celac teve de enfrentar a interferência
dos Estados Unidos, que não poderia deixar barato essa ideia. Como
Sebastián Piñeda não era um governante afinado com o processo
bolivariano, o projeto claudicou, com a comunidade tendo mais um
caráter de fórum consultivo. Agora, com a direção de Cuba, a
entidade se institucionalizou e está tentando produzir documentos
que realmente venha interferir no andamento das políticas.
Hoje teve início a II
reunião da Celac, desta vez em Havana, Cuba, com a presença de 33
nações. E é a primeira sem Chávez, aquele que impulsionou e
revigorou o conceito de bolivarianismo, dentro do qual a soberania e
a união das nações era ponto fundamental. O tema central do
encontro capitaneado por Cuba é a soberania. Segundo Raul Castro, o
documento mais importante que está sendo produzido visa declarar a
região como um espaço de paz, livre de armas nucleares. A ideia é,
com isso, discutir a presença das bases militares estadunidenses na
América Latina, que já chegam a 33. Certamente esse será um ponto
altamente polêmico, se considerarmos que a Colômbia, sozinha, tem
sete delas e é uma aliada dos Estados Unidos.
A presença de José
Miguel Insulza, o secretário geral da Organización de Estados
Americanos (OEA), pode ser um elemento perturbador, como foi a de
Edward James Dawkins, no Congresso Anfictionico do Panamá, chamado
por Bolívar. Representando a Grã Bretanha, que foi como
observadora, ele acabou fazendo negociações em separado com os
países e de todo aquele encontro foi o que mais lucrou em negócios
e acordos. A medida de chamar Insulza pode parecer simpática, mas
ele pode muito bem ser um cavalo de Tróia.
Outro ponto que a
reunião deverá tratar é a luta contra a pobreza, a fome e a
desigualdade. Como disse Raul Castro, na abertura, os 10% mais ricos
da população latino-americana recebem 32% dos investimentos,
enquanto os 40% mais pobres recebem apenas 15%. Tendo mais de 15% de
toda a superfície terrestre, com 8,5% da população total, a região
tem reservas consideráveis de minerais não renováveis, um terço
das reservas de água doce, 12% da área cultivável, 21% de bosques
naturais e o maior potencial em produção de alimentos. Talvez,
nesse tema, muitos dos presidentes progressistas tenham de explicar
por que, ao mesmo tempo em que praticam algumas políticas
importantes de distribuição de renda, insistem em destruir
comunidades em nome do lucro, como é o caso do Equador, que desaloja
gente para atender mineradoras; e o caso do Brasil que tem permitido
crescer os conflitos indígenas, dando margem para que os
latifundiários, monocultores, sigam exercendo seu poder. Também aí,
as divergências deverão aparecer. Muitos dos países na região são
os maiores do mundo em produção de minério. Chile, com o cobre,
Brasil, com o ferro, México, com a prata, Bolívia e Peru, com o
estanho. A região tem ainda 65% das reservas mundiais de lítio, 42%
de toda a prata, 38% do cobre, 33% do estanho, 18% de bauxita e 14%
de níquel, isso sem contar o petróleo e os mais importantes
aquiferos do mundo.
Essas riquezas são as
causas da cobiça e ao mesmo tempo poderiam ser a salvação, se
utilizadas de maneira a não destruir o ambiente e em favor das
gentes. E aí não se trata de transplantar a lógica do
desenvolvimento sustentável, que não existe no capitalismo. Haveria
que se caminhar para outras alternativas de desenvolvimento, que
levasse em conta o equilíbrio do planeta. É fato que mesmo com toda
essa riqueza, a América Latina tem 47 milhões de pessoas na
condição de famintas. Segundo pesquisas da ONU esse número
diminuiu em três milhões desde 2008, mas ainda assim, é gente
demais passando fome, com os pés em tantos recursos. Além do mais é
a região que mais produz comida, podendo alimentar o mundo inteiro.
Nada justifica esse paradoxo.
De qualquer sorte,
mesmo com tantas diferenças, a Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos é uma preciosa novidade, desde o
grito de Hatuey. E o desafio sempre será encontrar caminhos de ação
conjunta – nesse território de 20 milhões, 453 mil e oito
quilômetros quadrados - em defesa não apenas das economias,
mas também das gentes que conformam essas nações. O perfil
do encontro, sem a presença abrumadora de Chávez, já veremos, tão
logo sejam divulgados os documentos.
Fontes : Abel Gonzáles Santamaria - El destino común de Nuestra América: la unidad, Agencia
de Informação Frei Tito para América Latina, Digna Castañeda, História do Caribe.