Cúmplice na esperança
Por elaine tavares -
jornalista
Um texto e um vídeo
sobre a Ocupação Amarildo, divulgado nas redes sociais, fizeram
assomar uma série de pensamentos que provocaram intensas e variadas
emoções. Um deles dizia: “Querem tomar chimarrão? Vão
trabalhar!”. Ora, uma pessoa não pode querer tomar chimarrão?
“Eles têm carro, não podem ser pobres”. Ora, um pessoa
empobrecida não pode ter um carro e ainda assim não ter onde morar?
Acaso o carro não seria um instrumento de trabalho? Outra pessoa
chegou a escrever que os pobres quererem morar na ilha era um
tremendo contrassenso e que a ilha deve ser dos ricos mesmos.
“Afinal, aqui é um paraíso”. Ou seja: se é paraíso só deve
estar disponível a quem tem muito dinheiro para desfrutar.
Não quero aqui
difundir certezas, muito menos dizer que o mundo com o qual eu sonho
seja o mais certo e que todas essas pessoas que odeiam os pobres
estão equivocadas. Até porque não acredito que estejam. Elas
talvez só consigam verbalizar aquilo que o mundo construído por
elas ao longo de suas histórias permitiu. Apenas quero ter o direito
de discordar. De dizer que não me agradam nenhum pouco essas
posições.
Nesse sentido não
venho trazer a verdade sobre o tema. Apenas gostaria de elencar
alguns elementos sobre uma forma de ver o mundo com a qual eu
compartilho e que mais me agrada. É o meu caminho explicativo para
as coisas, e não quer dizer que seja “o” caminho. De qualquer
maneira é de minha completa responsabilidade.
Compartilho de uma
antiga emoção que, segundo o biólogo Humberto Maturana, é
constitutiva da raça: o amor. Mas não essa babaquice do amor
sentimento, esse no qual um se julga dono do outro, capaz até de
matar para manter o que pensa ser seu. Não, falo do amor biológico,
esse que permite que a vida exista.
Desde o princípio dos
tempos da história humana, foi o amor – a aceitação do outro
como legítimo outro na convivência – que permitiu à raça humana
o caminho em direção ao que somos. Os grupos cooperam, unem-se
solidariamente para caçar, para plantar, para proteger as crias,
para construir uma comunidade. Assim, o amor não é um
fenômeno cultural, mas biológico. Sem ele, a raça se esvai.
Mas, com o passar do
tempo, os humanos, por uma série de motivos, foram esquecendo essa
emoção e acreditando que, na vida, o que vale é a competição. A
vitória do mais apto, do mais forte. Daí que vivem o tempo
todo disputando poderes, espaços e ideias em vez de seguir o curso
normal da vida que é a cooperação. Por isso, não é sem razão
que muitas pessoas acreditam que os pobres são pobres porque não se
esforçam o suficiente. Ou porque são incapazes de vencer as
batalhas da vida. Não conseguem enxergar para além da janela e
perceber como funciona a sociedade, na qual o pobre é, na verdade,
empobrecido pelas circunstâncias impostas por um sistema de
exploração. Talvez essas pessoas não consigam mesmo ultrapassar os
limites do seu mundo, logo, sua linguagem (preconceituosos e racista)
tampouco possa ser diferente. São criaturas limitadas pela sua
estrutura.
A forma capitalista de
organizar o mundo aposta todas as suas fichas na competição. Tudo
diz respeito a eliminar o outro. O outro vira inimigo e não mais
aquele com o qual se pode construir algo, ainda que haja
divergências. E essa competição é completamente inumana, porque
supõe que quando um ganha, o outro não pode obter o que se ganhou.
É a exclusão. É algo abissalmente diferente do que a raça vem
experimentando desde a 3,5 bilhões de anos, ou seja, a coexistência
amorosa, o cuidado com outro, a solidariedade.
Penso que nada do que
se diga sobre essas famílias que hoje ocupam o terreno próximo ao
Rio Ratones possa mudar a opinião das pessoas que já estão
contaminadas por essa maneira de pensar que dá luz à exclusão, à
discriminação e ao racismo. A dor de uma mãe que tem de deixar sua
filha de cinco anos sozinha em casa, o desespero de um homem que não
pode mais tomar o seu chimarrão (elemento constitutivo de seu ser),
ou o horror de um pai que não pode colocar comida na boca dos seus
filhos, não as toca. Porque não são capazes de ver o outro como
alguém que é seu igual, que é real na convivência. Para elas,
essas famílias, essas pessoas que lutam por um lugar no “paraíso”,
são apenas “perturbações” do ambiente. Coisas. Logo, passíveis
de serem eliminadas, como se estivessem num “big-brother”
particular.
Poderíamos apelar aos
direitos humanos, aos bons sentimentos, a uma ética universal. Mas,
nada disso adiantaria, porque essas pessoas estão mergulhadas em
emoções que constituem a sua forma de ser no mundo. E essas emoções
– nascidas desde uma práxis discriminatória que lhes é
estrutural – não permitem outra racionalidade que não essas:
“são pobres, são bandidos potenciais, logo, devem ser
eliminados”.
Bueno, e se é assim,
que fazer? Cabe a nós seguir anunciando esse mundo antigo –
esquecido – da existência no amor. O outro - caído, vitimizado,
sofrido, oprimido – é real. Faz parte da raça, espera por nossa
solidariedade. A mesma que assoma em casos extremos como quando há
um desastre natural. Mesmo as pessoas mais empedernidas se dispõe a
doar um saco de arroz. Porque esse é elemento constitutivo do
humano: o amor. Então, se ele aparece, assim, nessas horas
“noas”, porque não poderia voltar a ser o que nos governa a
todos?
Mas, enquanto isso não
acontece a gente se junta a outros seres humanos que têm o mesmo
projeto de vida, a mesma forma amorosa de aceitar o outro como
legítimo outro na caminhada da vida. E, assim como aqueles que
pensam diferente, também nós temos todo o direito de acreditar
nessa forma cooperativa de vida, na qual a pobreza, a opressão, a
exploração, são situações a serem superadas de maneira conjunta.
Um ajudando o outro. É nosso modo de atuar no mundo. O modo que
escolhemos. Participamos todos daquilo que Maturana chama de
“conspiração ontológica”, que é a liberdade de ação que se
conquista ao compartilhar um desejo que serve de referência para
guiar o agir de outros companheiros que conosco convivem.
Eu respeito todos os
comentários, mesmo os mais terríveis, mas reivindico o direito de
não concordar com os que insistem em tornar os pobres os culpados
por suas dores. E, desde aí, finco pé na luta por esse mundo com o
qual não apenas sonho, mas que, passo a passo, na comunhão com
outros iguais a mim, vou construindo.
Toda solidariedade ao
povo que hoje luta por moradia na ocupação Amarildo, em
Florianópolis. Somos cúmplices nessa esperança!