Colômbia arde e Santos “dando papaia” em Macondo
“Em
Macondo não passou nada, nem está passando nem passará nunca. Este
é um povoado feliz”. Tal
é a resposta que, na obra-mestra de Gabriel García Márquez, Cem
Anos de Solidão,
os militares dão aos familiares das três mil vítimas do massacre
de Macondo.
Esta
obstinação macondiana em negar o evidente ecoa na atitude do
presidente Santos quando, recentemente, dizia que não havia
paralisação agrária na Colômbia. Por que, então, os milhares de
soldados e policiais espalhados ao longo do território nacional? Por
simples esporte? Sua atitude me recordava um personagem sinistro que
há alguns anos andava pela vida dizendo que na Colômbia não havia
conflito armado e, no entanto, militarizou o país, aumentou em
níveis incalculáveis o gasto militar e triplicou o pé de força do
exército. Santos reconhece o conflito armado, porém ignora o
conflito social, um conflito muito mais extenso, subterrâneo, talvez
menos visível, porém o qual é a vertente que nutre e rega o
conflito armado.
Não
há tal paralisação, disse Santos... É uma invenção de centenas
de milhares de pessoas. Porém, então, por que depois se foi para
Tunja a tentar desativar uma paralisação que não existe? Ante o
ridículo destas declarações [evidenciado pelos rios humanos que se
viraram a demonstrar-lhe, com caçarolaços, que existem, sim, e que
merecem respeito], deu para trás dizendo, torpemente, que sua
frasezinha havia sido um “papayazo”. Isso,
não mais, um papayazo.[1]
Santos
vive no país de Macondo, com uma
cenoura pequena numa mão e um enorme porrete na outra.
Com a pequena cenoura, trata de cooptar a setores do movimento de
protesto ou de silenciá-los momentaneamente com promessas espúrias
que não cumprirá. Com o porrete, machuca e assassina aos
manifestantes no resto do país. Aqui não passa nada, diz. Porém
passa, ainda que lhe doa.
O pano
de amostra da profundidade do mal-estar na Colômbia é a situação
de Boyacá, região tradicionalmente conservadora, descrita num
artigo da revista Semana como “um
dos estados mais pacíficos e tranquilos do país”[2],
cujos campesinos, como ironicamente nos relembra Alfredo Molano, “não
saíam para lutar desde a batalha do Pantano de Vargas”[3].
Aí, o ESMAD tem se comportado como um verdadeiro exército de
ocupação, como o denuncia o informe preliminar da Comissão de
Verificação de Direitos Humanos que esteve nesse estado verificando
os desmandos da força – mal chamada – pública[4]. Neste informe
se denunciam agressões físicas e tortura a campesinos e menores de
idade, abusos sexuais, uso indiscriminado de gases, ataques com armas
de fogo, explosivos e armas brancas, detenções massivas e
arbitrárias, acusações e perseguição aos líderes da
paralisação, utilização de helicópteros, uso de ambulâncias
para transportar membros do ESMAD, assim como a destruição da
propriedade dos campesinos, invasão a seus lares e roubo de seu
dinheiro e alimentos[5]. Parece como se, literalmente, estivéssemos
ante hordas
de hunos
em épocas da decadência do Império Romano. Esta classe de
comportamento violento e violador se dá à vista e paciência de
todo o mundo, enquanto Santos [com a ajuda de seus amigos em Europa e
EUA] grita aos quatro ventos os “progressos” na Colômbia em
matéria de direitos humanos. E depois se surpreendem que na Colômbia
haja guerrilha...
O
relato do campesino José
Henry Pineda,
de Tibasosa, Boyacá, cuja tortura em mãos do ESMAD foi filmada e
circulada amplamente por internet, é um exemplo claro do que se
denuncia no mencionado informe preliminar. “Até
me ajoelhei para que não me pegassem. Eles são muito selvagens. Não
se dão conta de que a pessoa é humana”,
afirma. Ademais, denuncia que os policiais lhe roubaram dez milhões
de pesos: “Me
disseram que se os denunciasse iam me matar. Estou assustado por
isso”[6].
Porém, a utilização de métodos terroristas por parte do Estado
não está impedindo que o povo saia a protestar, como dizia Molano,
porque os campesinos estão “cansados
dos protestos pacíficos, das listas de petição, das respeitosas
solicitações zombadas”.
Que o
campesinato esteja tão irado não é casual: estão arruinados
graças aos Tratados de Livre Comércio [TLCs], nos quais os governos
de Uribe e Santos gastaram milhares de milhões pagando lobistas,
negociadores, opinantes, financiando caras viagens para lamber botas
em Europa e Estados Unidos, e em propaganda com a qual saturaram toda
a mídia oferecendo “prosperidade para todos”. Quem foram os
beneficiados com estes acordos? Os negociadores que venderam o país
e arrancaram sua fatia, porém, sobretudo, os capitalistas europeus e
norte-americanos. Não é exagerado que o arcebispo de Tunja, Mons.
Luis Augusto Castro, chamasse a estes acordos “uma traição à
pátria”, se por pátria entendemos o povo[7]. Num ano de
implementação do TLC com os EUA, a importação de alimentos desse
país para Colômbia aumentou em 81%; fiando mais fino, as
importações de arroz cresceram em incríveis 2.000% [de U$1,5 para
U$41 milhões]; os azeites vegetais e derivados em 200%; as batatas
congeladas em 200%; a carne de porco em 95%; produtos lácteos em
90%[9]. Nada disto é uma surpresa: os advertimos em anos de campanha
contra o livre comércio. Podemos surpreender-nos, então, da
extensão da indignação campesina, particularmente de leiteiros,
arrozeiros, batateiros? Podemos surpreender-nos [com o fato de] que
os campesinos do altiplano cundiboyacense, [mesmo] ainda os da
agradável Boyacá, tenham se sublevado com uma força inusitada
quando os produtos de seu clima são os que mais fortemente têm que
competir com as importações dos EUA?
O
tratamento militar do protesto tem sido a regra em todo o país. No
Cauca se deram situações gravíssimas, que já denunciamos[9]. Em
La Venta [Cajibío], uma concentração de 2000 pessoas foi
barbaramente reprimida pelo ESMAD, polícia e exército, com a
utilização de minas anti pessoais, explosivos, projéteis amotados,
armas de fogo etc. O resultado: 15 campesinos feridos, 5 deles
gravemente. Um deles, Uberney
Mestizo,
terminou com uma mão amputada[10]. Em Fusagasugá o ESMAD assassina
a um jovem de Pasca, Juan
Camilo Acosta,
de um disparo de gás lacrimogêneo arremessado diretamente ao corpo.
Se utiliza contra uma mobilização social pacífica métodos de
contra insurgência: se oferecem recompensas por informação sobre
os organizadores e os líderes do protesto. Se dá um golpe a um
“objetivo de alto valor” [na linguagem contra insurgente do
Estado] como é o dirigente campesino Húber
Ballesteros,
dirigente da federação campesina Fensuagro, da CUT, da Marcha
Patriótica, sobrevivente da UP e membro da Mesa de Interlocução
Agrária e Popular [MIA], que coordena as mais importantes expressões
organizativas do protesto em nível nacional. É patético ver o
vice-fiscal Perdomo afirmando que esta grosseira perseguição a um
dos máximos dirigentes da paralisação agrária e popular não nada
a ver com suas atividades gremiais, que esta detenção arbitrária
teria que ver com um processo de suposto financiamento ao
“terrorismo”, segundo informes tirados como de uma cartola de um
mago, dos computadores capturados aos comandantes guerrilheiros Iván
Ríos, Jorge Briceño e Alfonso Cano[11]. Claro, quem poderia ser tão
mal pensado para supor que isto é uma montagem judicial, se esses
computadores foram capturados, respectivamente, em 2008, 2010 e
2011... e anos depois, curiosamente em meio a uma paralisação
nacional, se lhe monta o processo. Que paradoxo que o único
terrorismo que o companheiro Ballesteros financia, porque está
obrigado a fazê-lo através de seus impostos, como a maioria dos
colombianos, é o terrorismo de Estado!
E
Santos? Dando papaia e porretadas em Macondo. Atuando como governante
de um povo ao qual despreza e de um país que desconhece. Mentindo e
usando a força militar contra o protesto social, dando chumbo quando
há que garantir o pão. Houve uma época na qual o povo em seus
protestos punha mortos em cifras redondas, de 10, 100, 1000 etc e, em
seguida, se negociava e tudo ficava em nada. Essa época já passou:
agora, os campesinos têm nomes, os campesinos não esquecem, os
campesinos têm câmaras para gravar a violência oficial, os
campesinos têm sede de justiça, seu sangue é indelével. “Papaia
Santos” está acumulando pontos e o povo, tarde ou cedo, lhe
passará a conta. Porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão
não terão uma segunda oportunidade sobre a Terra.
NOTAS:
[4]
Comisión integrada por las siguientes organizaciones humanitarias:
Fundación Comité de Solidaridad con los Presos Políticos,
Observatorio de Derechos Humanos y Violencia Política de Boyacá y
Casanare, Centro de Atención Psicosocial, Corporación Claretiana
Norman Pérez Bello, Comité Permanente por la Defensa de Derechos
Humanos, Movimiento Nacional de Victimas de Crímenes de Estado,
Corporación Social para la Asesoría y Capacitación Comunitaria,
Colectivo de Abogados José Albear Restrepo, Comisión de Derechos
Humanos del Congreso de los Pueblos, Equipo Nizkor, Periodistas
independientes, con el acompañamiento de Brigadas Internacionales de
Paz.
[10] http://www.reddhfic.org/index.php?option=com_content&view=article&id=603:dp-cajibio-25-agosto-2013&catid=114:denunciascauca2013&Itemid=231
[11] http://www.elespectador.com/noticias/judicial/existen-pruebas-relacionan-huber-ballesteros-farc-fisca-articulo-442524
(*)
José Antonio Gutiérrez D. é militante libertário residente na
Irlanda, onde participa nos movimentos de solidariedade com América
Latina e Colômbia, colaborador da revista CEPA(Colômbia)
e El
Ciudadano(Chile),
assim como do sítio web internacional www.anarkismo.net.
Autor de "Problemas
e Possibilidades do Anarquismo"
(em portugués, Faisca ed., 2011) e coordenador do livro "Orígenes
Libertarios del Primero de Mayo en América Latina"
(Quimantú ed. 2010).