Duménil e os mantras neoliberais: cortar gastos sociais, reduzir custos do trabalho
No capitalismo,
há cada período de cinco anos, aproximadamente, temos uma recessão,
onde a produção diminui durante um ano mais ou menos. Mas há outro
tipo de problema, mais grave, que são as crises estruturais que
trazem perturbações para a economia do
mundo inteiro. Desde 2007 estamos
vivendo uma dessas crises que atingiu o modelo
neoliberal como um todo e ainda não
terminou.
A avaliação é do economista
francês Gérard
Duménil,
pesquisador do Centre National de la
Recherche Scientifique (CNRS), que
esteve em Porto Alegre
para lançar seu livro “A Crise do Neoliberalismo”,
lançado no Brasil pela Boitempo
Editorial.
Duménil
teve um dia cheio em Porto Alegre na quinta-feira: gravou uma
entrevista para o programa Frente a
Frente, na TVE,
e fez palestras na Fundação de Economia
e Estatística (FEE) e na PUC-RS.
Antes de Porto
Alegre,
Duménil
também lançou o livro em São Paulo (dia 24 de abril) e em Foz
do Iguaçu (dia 5 de maio).
Escrito em conjunto com o também
pesquisador Dominique
Lévy, a
obra analisa a atual crise econômica
global e os fatores que deram origem a
ela. Duménil
defende que a crise iniciada em 2008 poderá se estender por um
período superior a dez anos, em função dos problemas vividos pelas
economias dos Estados Unidos
e da União Europeia,
em especial o aumento da dívida pública.
“A Crise do Neoliberalismo”
discute temas como a financeirização econômica, a reestruturação
produtiva, as lutas de classes e as relações internacionais às
portas de uma nova ordem global multipolar. O livro analisa a chamada
“Grande Contração”
de 2007-2010 no contexto da globalização
neoliberal.
Entre os problemas enfrentados hoje pelos Estados Unidos, os autores
citam a queda do investimento interno na indústria, uma dívida
doméstica insustentável e a crescente dependência de importações,
que aliados ao desenvolvimento de uma estrutura financeira global
frágil, ameaçam a força do dólar. Duménil
e Lévy
preveem que, a menos que haja uma alteração radical da organização
político-econômica
dos EUA, o centro político
e econômico
o neoliberalismo,
haverá um declínio agudo da economia norte-americana, com
implicações para todo o mundo.
O economista francês caracteriza a
crise atual como uma crise de hegemonia financeira, similar a que
ocorreu no período da Grande
Depressão,
nos anos 30. Neste tipo de crise, explicou, o capitalismo explode por
falta de controle. “Sempre há um aspecto financeiro muito
importante neste tipo de crise. Corresponde ao que Marx
e Engels
chamaram no Manifesto Comunista
de aprendizes de
feiticeiros,
que são os capitalistas
que acabam perdendo o controle sobre um certo tipo de mágica
financeira que inventam”. No caso atual, a mágica girou em torno
do mercado de fundos derivados que escapou completamente do controle
de seus criadores. O capitalismo, assinalou, sempre se recuperou de
todas essas crises, mas isso sempre provocou também mudanças
importantes no funcionamento do sistema.
Intelectual de formação marxista,
Duménil
defende que o neoliberalismo
deve ser pensado levando em conta a existência de relações de
poder entre as classes sociais. No período da Grande
Depressão, exemplificou, a renda das
classes capitalistas diminuiu enormemente. Já o período do
pós-guerra teve como novidade mais importante a criação do Estado
de Bem-Estar Social e o fortalecimento
da social-democracia
europeia. Com a crise dos anos 70,
as classes capitalistas conseguiram de novo impor seu poder e deram
origem ao neoliberalismo.
Entre cada crise, resume, há o surgimento de uma nova ordem
econômica social, mais à esquerda ou mais à direita.
O que há em comum em todos esses
processos, sustenta ainda o economista francês, é a permanência de
uma lógica de classe. “As palavras esquerda e direita seguem tendo
um significado de classe. Após a crise
dos anos 70, as classes capitalistas
conseguiram impor uma nova ordem social, gerando uma grande
acumulação de riqueza, cujo montante não temos como conhecer em
função da existência dos paraísos
fiscais”.
O centro do mundo neoliberal está
nos Estados Unidos,
aponta Duménil.
Na Europa, esse modelo apresenta algumas variações. “A Alemanha
tem hoje um governo de direita, mas é um país menos neoliberal
que a França, por exemplo, onde houve um processo de financeirização
muito grande, o que ocorreu também na Espanha”, exemplifica. Ao
falar da situação desses países, Duménil
detalha com mais precisão o que define, afinal de contas, o
neoliberalismo.
“As empresas hoje nos Estados
Unidos recompram suas próprias ações
para aumentar a cotação das mesmas nas bolsas
de valores. Com a globalização
financeira, o Banco Central dos EUA
acabou perdendo o controle sobre o comportamento do sistema
financeiro.
Some-se a isso, o desequilíbrio do comércio
exterior e o processo de endividamento
das famílias e temos os ingredientes que fizeram a crise
explodir.”
O economista
ressaltou que nem todos os países foram atingidos do mesmo modo pela
crise. “Essa não é uma crise
mundial,
não há uma crise na China
ou no Brasil,
por exemplo. O mais grave é que nos Estados
Unidos e na Europa há uma tendência de
declínio da taxa de investimentos. Se essa tendência continuar eles
vão perder seu domínio mundial”.
O que há de diferente na crise
atual, em comparação ao que ocorreu nos anos de 1930, destacou
Duménil, é
que agora não ocorreu uma grande depressão por causa de políticas
muito fortes que foram aplicadas rapidamente. “Não esperaram três
ou quatro anos para tomar medidas, como ocorreu na crise dos 30.
Foram feitas grandes operações de empréstimos para socorrer o
sistema financeiro e adotadas políticas orçamentárias muito
fortes. Houve um preço a pagar. A dívida dos EUA
aumentou 37% por causa do crescimento do déficit fiscal do governo,
mas com isso conseguiram evitar uma grande depressão”.
E o que acontece agora? Duménil responde:
“Nos EUA, continua enorme o poder das grandes corporações capitalistas e financeiras. Por outro lado, temos uma atuação muito forte o governo Obama. Neste sentido, temos um neoliberalismo (financeirização) menos liberal, com forte intervenção do Estado, adoção de práticas comerciais protecionistas mais ou menos disfarçadas e uma política orçamentária muito forte, geradora de um grande déficit também. Além isso, a Reserva Federal (Banco Central dos EUA) está usando políticas muito fortes para controlar as taxas de juro de longo prazo. Com isso, os EUA conseguiram retomar um crescimento de 2%. Devemos considerar aí também a existência do fator nacional, que é a preocupação norteamericana com a manutenção da hegemonia no mundo. Mas eles não conseguirão manter esse ritmo sem mudar as regras do neoliberalismo”.
A Europa,
segundo a análise de Duménil,
tem uma política mais à direita do que aquela praticada hoje pelos
EUA. “Na
Europa, os governos só se preocupam em tranquilizar os bancos e
diminuir os déficits dos governos. O problema é que cada vez que se
diminui o déficit orçamentário, o país entra em recessão. No
caso da Europa,
não há o fator nacional operando como no caso dos EUA”.
A situação da China
e do Brasil
é diferente, apontou. “A China
está criando um sistema capitalista sob o comando do Partido
Comunista. Não é um capitalismo
neoliberal pois o governo controla tudo.
Assim como nos EUA,
há um forte fator nacional operando nas decisões do governo chinês.
A situação do Brasil
é um pouco intermediária. A economia do país tem elementos
neoliberais, como a presença forte do sistema financeiro e seus
agentes, mas tem também políticas sociais importantes, como o Bolsa
Família e a valorização do
salário mínimo, além de ter também um fator nacional operando, um
projeto nacional. O Brasil conseguiu se inserir na globalização
de um modo eficaz”.
Diante deste cenário, Duménil
previu dificuldades para o Brasil nos próximos anos, mas apontou
diferenças existentes no conjunto das políticas implementadas aqui,
em relação ao que ocorre hoje principalmente na Europa, onde a
preocupação central é reduzir os gastos dos governos, discurso
adotado pela oposição ao governo Dilma
e pela maioria dos meios de comunicação. O economista francês,
aliás, manifestou surpresa com a manchete da entrevista que concedeu
ao jornal Zero
Hora: “Na
entrevista, eu falei mais de 20 minutos e na última frase levantei
uma hipótese sobre as dificuldades que o Brasil pode enfrentar. Pois
essa última frase virou a manchete da entrevista”. Questionado
sobre o papel da mídia no sistema neoliberal, Duménil
disse:
“É horrível. Eu tomo meu café da
manhã na França ouvindo rádio. Não sei como meu estômago
aguenta. Tento ler um pouco o Le Monde,
mas está cada vez pior. É pura propaganda. Repetem o mesmo mantra:
diminuir os custos do trabalho e cortar os gastos sociais. Não há
alternativa, repetem à exaustão”.
“Nós precisamos sair do
neoliberalismo”,
concluiu Duménil.
“Isso significa mudar a forma de administrar as empresas, mudar as
regras do comércio exterior e controlar os movimentos de capitais.
Isso exige uma luta política muito forte”. O neoliberalismo,
assinalou, é resultado de uma construção de muitos anos, que
começou no pós-guerra e se consolidou a partir dos anos 70. Hoje,
apesar da crise, esse modelo segue forte e conta com um trabalho de
propaganda diário executado pelos meios
de comunicação, que se tornaram um
braço ideológico e também econômico do neoliberalismo.
É isso que explica que, no café da manhã que Duménil toma na
França ou no café da manhã que alguém toma em Porto Alegre,
escute-se o mesmo mantra no rádio, nas televisões ou nos jornais
(ou na internet): diminuir os gastos do governo, cortar gastos
sociais, diminuir os custos do trabalho. Aí está o resumo da
disputa eleitoral deste ano no Brasil.