Como o tsunami irá arrebentar na América Latina
por Guillermo Almeyra [*]
O crash financeiro ainda não se converteu em depressão generalizada, mas já começa a afectar não só a economia real estado-unidense e europeia como também as economias periféricas, como a argentina, a mexicana e a brasileira. Diga-se de passagem, é fantástico como ainda há governos que dizem "a crise não nos afectará", mais como exorcismo do que como previsão, e a enormidade da inconsciência daqueles que elaboravam orçamentos e faziam extrapolações, até há poucas semanas, como se seus negócios ou as economias dos seus países estivessem localizados em Marte e não neste mundo unificado pelo capital financeiro.
Também é assombrosa a rapidez com a qual os neoliberais mais empedernidos passam agora a propor medidas keynesianas, distribucionistas, a um Estado salvador que até ontem os aborrecia. Os néscios esperam tudo da Divina Providência, laica ou celestial, e não sabem, como o vulgo, o dito de "a Deus rogando e com o maço dando"...
O que é evidente é que o efeito do crash actual, e muito mais ainda da grande onda que ainda não chegou, afectará todos os países latino-americanos, mas de formas diferentes. Cuba, por exemplo, já destroçada pelo bloqueio e pelos furacões que não cessam, deverá enfrentar no imediato a importação crescente de alimentos, a queda do preço do níquel que exporta, um preço do petróleo que se reduzirá mas nunca demasiado, a queda previsível do turismo europeu à ilha e até a diminuição da ajuda venezuelana, porque a redução do preço do petróleo não impedirá os planos nacionais de Hugo Chávez mas dificultará sua ajuda a outros países ou a criação de infraestruturas custosas. A Bolívia, em contrapartida, poderia inclusive beneficiar-se a curto prazo, porque os Estados Unidos estão a lamber as suas feridas e não estariam dispostos a mais uma aventura na América Latina; ao passo que os governos argentino e brasileiro, pelo seu lado, não ajudarão os sojeiros da Meia Lua nem querem instabilidade nas suas fronteiras. As poucas manufacturas que a Bolívia exporta, se os EUA não as adquirissem, poderiam, apesar de tudo, ser vendidas à Venezuela. Os prefeitos ultra-direitistas ficariam assim ainda mais isolados frente a um governo mais firme.
O Equador, que vende petróleo, flores e bananas, tem um governo forte e um rendimento assegurado, porque o preço do combustível não cairá a pique, uma vez que o Inverno no hemisfério norte manterá a procura doméstica ainda que as demais sejam reduzidas. É certo que a Bolíva, o Equador, os países centro-americanos e o México serão muito afectados pela diminuição das remessas dos seus emigrantes e até pelo retorno de parte dos mesmos a mercados onde não há trabalho; mas essa mesma situação poderia impulsionar a esquerda salvadorenha em direcção ao governo e radicalizar toda a América Central, que se verá muito desestabilizada pela crise.
A luta dos setores burgueses tradicionais ligados ao capital financeiro internacional contra os outros sectores que defendem o desenvolvimento e o reforço do mercado interno, muito provavelmente será agudizada na Venezuela, Equador, Argentina e Brasil.
Também aumentará a disputa entre os países a fim de descarregar a crise no vizinho, como já se vê no Mercosul, entre o Brasil, com o seu real desvalorizado, e a Argentina, que de repente carece dos turistas brasileiros e deixa de vender automóveis e roupa cara para ter de defender-se, em contrapartida, de uma invasão de mercadoria brasileira barata que aumentará o desemprego local e a pobreza.
A queda do preço da soja e dos alimentos, por outro lado, reduzirá a cobrança de impostos nos países que se baseiam nessas exportações e estimulará a emigração de capitais. No imediato, já lançou por terra não só os orçamentos recém elaborados sem levar em conta a situação internacional como também os projectos fantasiosos, como a construção de um comboio bala na Argentina ou o pagamento da dívida desse país ao Clube de Paris.
A China, que é capitalista, está interessada em salvar os Estados Unidos, que lhe devem um milhão de milhões de dólares, e onde investiu 500 mil milhões mais em hipotecas podres da Fanny Mae e do Freddie Mac ou em títulos do Tesouro e empresa que cambaleiam. Como o crash económico nos Estados Unidos significaria a redução das suas exportações, ou seja do emprego, e o surgimento de graves problemas sociais e até possíveis motins camponeses e urbanos, não está em condições de ajudar os países latino-americanos.
O "modelo" chinês não é portanto proponível em Cuba nem em parte alguma. A única solução consiste em ousar, em inovar. Em juntar os créditos e as divisas dos países sul-americanos num banco de desenvolvimento capaz de salvar o Paraguai e o Uruguai, assim como de ajudar a Bolívia, mas também de aplicar remendos nas economias de outros países maiores. Ou de preservar, antes de mais nada, os empregos, para manter o consumo, reorganizando os sistemas impositivos actuais (os pobres, com o IVA, pagam mais e pagam sempre ao passo que os ricos evadem seus impostos).
Consiste sobretudo em fazer obras públicas para dar trabalho e assegurar os consumos, e em reforçar a saúde, a educação, a segurança social, estatizando sem pagamento as empresas que não cumpram as leis sociais, em controlar o sistema bancário, em elevar o nível de vida e de capacitação dos trabalhadores.
A atual carência de uma esquerda anti-capitalista, com um plano coerente de alternativa à política do grande capital e uma visão mundial e internacionalista, é um factor que ajuda o capital na sua tentativa de fazer com que a sua crise seja paga, como sempre, pelos trabalhadores. Mas hoje, prioritariamente, há que discutir o que fazemos e como nos unirmos, as vítimas do tsunami, contra aqueles que provocam sempre este tipo de desastre.
[*] Doutor em Ciências Políticas (Univ. París VIII), professor investigador da Universidade Autónoma Metropolitana, unidade Xochimilco, do México, professor de Política Contemporânea da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional Autónoma do México.
O original encontra-se em La Jornada.