por Miguel Urbano Rodrigues
A rejeição da Câmara de Representantes dos EUA ao plano de salvamento do sistema financeiro proposto pelo governo Bush, os candidatos à Presidência e as lideranças do Congresso ampliou muito a gravidade da crise do capitalismo. O afundamento das bolsas européias e asiáticas acompanhando o pânico de Wall Street (o Dow Jones, num recorde histórico, caiu 6,98%) conferiu à crise estadunidense proporções mundiais.
A um apelo desesperado da elite do poder político, os deputados da União responderam com um voto também de desespero. A recusa não foi determinada por respeito ao povo, nem sequer pelas vitímas do caos implantado no sistema bancário. Os motivos do Não dos legisladores são tão pouco éticos como os dos senhores que lhes imploravam a aprovação de 700 bilhões de dólares destinados sobretudo a comprar dos mercados créditos podres, as famosas hipotecas dos subprimes.
Às vésperas das eleições para renovação dos seus mandatos, a maioria dos representantes - sobretudo os republicanos - teme ser punida nas urnas se aprovar um plano que oferece o dinheiro dos contribuintes aos bancos responsáveis pelo desastre e ignora a situação angustiosa de 10 milhões de compatriotas em risco de perder as suas casas.
Do outro lado, Bush, Obama, Mc Cain, Bernanke, Paulson, Pelosi e as estrelas da finança recorrem a uma retórica farisaica no seu esforço para evitar um estouro do sistema bancário que ameaçaria a sobrevivência do sistema capitalista.
O grupo elaborará agora, com urgência urgentíssima, uma nova proposta e vai renegociar a sua aprovação com a Câmara dos Representantes (no Senado tudo será mais fácil). As mudanças no texto serão, tudo o indica, cosméticas, porque o SIM dependerá de promessas e favores que não serão tornados públicos.
O medo que alastra em Washington e nos meios políticos e financeiros europeus justifica-se. A crise avança como um iceberg à deriva no qual a parte submersa, a principal, não é visível. A cadeia de falências adquiriu um ritmo assustador. Na segunda feira, a do Wachavia, o quarto banco dos EUA, foi evitada através da compra parcial desse gigante (com uma carteira de empréstimos no valor de 312 bilhões) pelo Citigroup.
Segundo a Agência Reuters, a Reserva Federal-FED está a emprestar ao mercado diariamente dezenas de bilhões de dólares, em decisão perigosa que coloca em risco o seu próprio futuro.
Na Europa, uma operação de socorro montada pela Holanda, Bélgica e Luxemburgo, salvou o Fortis. No Reino Unido, o Estado nacionalizou o Bradford & Bingley. O terremoto bancário até na Islândia se fez sentir (nacionalização do Glitnir ).
Autoridades financeiras francesas e alemãs afirmaram no início de setembro que a crise afetaria pouco a união Européia porque o mercado europeu estava mais protegida do que a dos EUA. Ingenuidade ou bazófia?
Nas últimos dias os governos do Reino Unido, da França, da Alemanha, da Bélgica, da Holanda, da Dinamarca, da Islândia, do Luxemburgo tiveram de intervir em operações de salvamento que custarão mais de 70 bilhões de euros. O Banco Central Europeu injetou mais 120 bilhões de euros no sistema bancário para aumentar a liquidez.
Como era de esperar, os grandes media internacionais, desde a CNN à BBC, passando pelo The New York Times ao Frankfurt Algemeine, apresentam visões distorcidas da crise. Privilegiam pormenores acessórios, forjam cenários e interpretações fantasistas e sobretudo subestimam ou ocultam as suas causas e consequências eventuais.
É muito generalizada, por exemplo, a omissão de referências ao mecanismo de obtenção dos 700 bilhões de dólares do Plano Paulson se ele, em segunda versão, for, finalmente, aprovado. É um fato que o contribuinte norte-americano será duramente penalizado porque a dívida pública e a dívida externa da nação sofrerão um brutal aumento. Mas não se informa, com raríssimas exceções, que a maioria desse dinheiro será obtido no Estrangeiro, porque serão sobretudo os bancos centrais europeus, asiáticos e latino-americanos os compradores das Obrigações do Tesouro dos EUA a emitir. Até a China entrará no leilão. Cabe aliás recordar que se o grande país asiático decidisse nestes dias trocar por outras divisas as suas colossais reservas de dólares e cobrar os títulos do Tesouro americano que acumulou, os EUA cairiam imediatamente na banca rota. Não o fará porque o seu próprio modelo de desenvolvimento também, então, naufragaria, mas a dependência norte-americana de Pequim é esclarecedora da extrema fragilidade do sistema financeiro montado pela potência hegemônica.
Outra conclusão – a mais importante de todas - que a elite da finança se abstem de extrair da crise é de natureza ideológica.
Não pode reconhecer publicamente que o caos implantado no sistema financeiro mundial demonstra a falência das teses que os governos dos EUA e da União Européia vêm proclamando com arrogância sobre a capacidade do neoliberalismo, fase superior do capitalismo, se impor como a ideologia definitiva, a única capaz de resolver os grandes problemas da humanidade. Segundo ela, a dimensão do Estado tenderia a ser progressivamente diminuída, reduzindo-se ao mínimo a sua intervenção na economia. Somente um mercado plenamente autônomo, livre de pressões estatais, intocável, poderia cumprir a sua missão insubstituível.
A História, mais cedo do que se admitia, começou a dar uma resposta totalmente negativa ao sonho dos sacerdotes do capital.
O pânico nas bolsas que acompanha a falência de gigantes bancários envolvidos em especulações, fraudes e escândalos iluminou, desmentiu e ridicularizou a religião do mercado. Agora a finança implora ao Estado que lhe acuda para salvar a banca e os banqueiros.
Sem a ajuda do Estado, o mercado afundaria. Em Portugal, Sócrates e os seus auxiliares e epígonos mergulharam num silêncio compreensível. Quase não falam da crise. Entusiastas das privatizações e praticantes do culto do mercado, a crise do sistema deixa-os mudos e nus perante o povo português.
Festejaram a privatização do mercado português e as fusões a ela posteriores. Desejariam levá-la ainda mais longe. Muitos desses senhores chegaram ao extremo de sugerir a privatização da Caixa Geral de Depósitos. Acredito que nunca meditaram seriamente sobre as consequências num panorama de crise do mercado para centenas de milhares de pensionistas da eventual entrega ao grande capital do maior banco português.
No momento em que escrevo, o mercado e as bolsas dos EUA e da União Europeia aguardam nervosamente o plano de socorro recauchutado que a Casa Branca vai submeter ao Congresso.
Mas, qualquer que seja o seu conteúdo, a crise prosseguirá, com tendência para situações potencialmente explosivas. A decisão de injetar centenas de milhões no mercado (em beneficio exclusivo dos responsáveis pelo desastre) não atingirá o objetivo de curar o paciente.
Porque a crise do sistema financeiro é inseparável de outra maior, a crise estrutural do capitalismo.
Grandes sofrimentos são identificáveis no horizonte para as vítimas da engrenagem da finança.
Nestes dias, o futuro próximo é imprevisível. Mas para quantos pelo mundo a fora rejeitam o capitalismo e o combatem por desumano, a única alternativa – embora distante ainda - é o socialismo, rumo a uma sociedade humanizada incompatível com a exploração do homem.
Serpa, 30 de Setembro de 2008