E agora?
É fascinante ler os comentadores de jornais de referência como The Financial Times e The Wall Street Journal a pretenderem incansavelmente que "o pior já passou" (talvez... esperemos... dedos cruzados... ave Maria cheia de graça... et cetera). A ignorância seria divertida se não envolvesse uma catástrofe mundial. Todos os países que atingiram o nível de civilização dos talheres-de-mesa estão agora a engendrar uma vasta rede de ciber-cabos que conduz os computadores dos seus bancos centrais directamente para a Estrela da Morte que paira acima dos negócios do mundo financeiro tal como um gigantesco aspirador de pó cósmico, a sugar dólares, euros, zlotys, forints, kronas, tudo o que tiverem. Tão rapidamente quanto as teclas criam pixels de divisas, as pequenas unidades de câmbio denominadas em electrões são sugadas para fora das economias terrestres em direcção ao buraco negro da morte monetária. Eis o que consistem os US$700 mil milhões do salvamento (desculpem-me, do "plano de resgate") e todos os seus riscos associados.
Para mudar as metáforas, digamos que estamos a assistir às duas etapas de um tsunami. O actual desaparecimento de riqueza na forma de dívidas repudiadas, apostas não honradas, contratos cancelados, e dramalhões gastos estilo Lehman Brothers é como o desaparecimento do mar. Os pobres e curiosos pequenos macacos humanos em pé na praia, paralisados pela estranheza do acontecimento enquanto o mar recua, o seu leito é exposto e surgem todas as espécie de criaturas exóticas a moverem-se na lama, enquanto os esqueletos de ruínas históricas são expostos à vista, e um grande fedor de putrefacção orgânica evola-se em direcção à costa. A seguir há a segunda etapa, o próprio maremoto – o qual, neste caso, será horrífica inflação monetária – a rugir de volta sobre o chão de lama em direcção à massa da terra, a esmagar-se sobre a praia, e a rasgar em pedaços todos os hotéis, casas e infraestruturas enquanto afoga os pobres e curiosos humanos que estavam ali fascinados pelo estranho espectáculo em cima dos terrenos mais altos. O maremoto assassino varre para longe tudo o que eles trabalharam para construir durante décadas, todas as suas comoventes pequenas propriedades e bens móveis, e os sobreviventes são deixados a lamentar-se em meio às ruínas quando o mar mais uma vez retorna ao seu berço eterno.
Assim, eis o que penso a que chegaremos: um intervalo de depressão deflacionária seguido por uma onda destrutiva de inflação que eliminará tanto a dívida como as poupanças construídas, raspando a paisagem financeira até à limpeza. Não há dúvida de que a etapa um está a caminho. Mas podemos assegurar que a onda gigante de dinheiro temerariamente concedida como empréstimo apenas numas poucas semanas fluirá de volta através da economia global deixando um rastro de destruição.
E daí? As sociedades do mundo serão confrontadas com a tarefa de reconstruir sistemas de actividades frutuosas, isto é, economias reais baseadas no comportamento produtivo ao invés dos fumos-e-espelhos de jogos trapaceiros como as finanças-Frankenstein. De facto, desculpe-me por comutar de metáforas mais uma vez, porque a história do Frankenstein – o novo Prometeu – ainda é outra narrativa adequada para informar-nos do que temos de fazer. Temos "brincado" com fogo financeiro e trouxemos à vida um monstro que agora pretende matar-nos. Uma pergunta que esta metáfora-narrativa levanta: quando é que a multidão de camponeses raivosos assaltará o castelo com as suas tochas em chamas e gritará pelo sangue dos criadores deste monstro? De preferência em breve, penso. Talvez, em alguns países (pode ser que nos EUA, se tivermos sorte), isto venha a assumir a forma mais ordeira dos processos sistemáticos, levando à justiça pessoas que perpetraram fraudes envolvendo a sopa de letras de "produtos" de investimento que azedou tantas contabilidades (e arruinou tantos indivíduos, instituições e governos). Penso que isto já começou com os investigadores a convocarem o evasivo Dick Fuld da Lehman Brothers – mas há centenas de outras figuras como ele fora dali, que conseguiram incontáveis milhões de dólares em actividades que eram simplesmente grandes vigarices. Eu não ficaria surpreendido se, eventualmente, o secretário do Tesouro Hank Paulson se encontrasse ele próprio no banco dos réus para responder como foi possível que, quando dirigia a Goldman Sachs, houvesse uma unidade especial na companhia dedicada a vender à descoberto (short selling) os próprios títulos apoiados por hipotecas que uma outra unidade na companhia tão afanosamente despejava em tudo quanto era fundo de pensões sobre a terra.
Além dos processos ordenados (os quais podem certamente tornar-se duros e cruéis), há a possibilidade de levantamentos sócio-políticos – revolução, violência, guerra civil, guerra entre países, toda a ementa de males que afligem a espécie humana. Não somos necessariamente imunes a isso aqui nos EUA, apesar da nossa querida noção de excepcionalismo, o qual nos inocularia contra todas as vicissitudes comuns da História.
Seja como for, os processos em tribunais, apesar de satisfazerem a fome de justiça (ou, mais particularmente, de vingança), não é uma actividade económica produtiva. Assim, a pergunta que pede mais uma vez para ser feita é: o que faremos nós? Sob as melhores circunstâncias reorganizaremos a nossa sociedade e a economia a um nível mais baixo de utilização da energia (e provavelmente a uma escala mais baixa de governação, também). A condição é que ela terá de ser muito mais baixa. Penso que seremos muito felizes daqui a cinquenta anos se tivermos umas poucas horas de electricidade por dia para utilizarmos.
A história da energia e da sua serviçal, as alterações climáticas [NR] , espreitam para além do espectáculo imediato do fiasco financeiro. Estas coisas implicam muito fortemente que as relações económicas agora a descarrilar não sejam reconstruídas – não do modo que eram antes, ou mesmo parecido com ele. O melhor desenlace serão sociedades que possam praticar agricultura orgânica "intensiva" em pequena escala e, igualmente em pequena escala, modos de fabricação por processos intensivos no contexto de redes sócio-políticas muito locais. Uma esperança que a acompanha é que possamos permanecer civilizados neste processo. Pessoalmente, enquanto reconheço o apelo (para outros, não para mim) da narrativa da "singularidade", o qual põe a raça humana a dar um súbito salto evolutivo rumo a alguma espécie de cyborg-nirvana, encaro-a como uma absoluta fantasia que tem zero probabilidades de verificar-se dada a nossa rematada aflição.
Mas retornando ao curto prazo, ou "o presente", diremos que há a questão de como os EUA atravessa esta eleição e a seguir os primeiros meses de um novo governo, enquanto ao mesmo tempo prossegue o grande fiasco. Vou votar pelo sr. Obama. Apesar de acreditar que ele dará um presidente muito melhor do que o apodrecido cão louco em que se tornou o sr. McCain, lamento qualquer um que seja colocado nominalmente "a cargo" das coisas neste próximo ano. O melhor que um presidente Obama pode fazer é oferecer algum conforto para um público que está totalmente despreparado para a convulsão agora sobre nós. O sr. Obama certamente não terá "dinheiro" para "gastar" em qualquer dos prometidos programas de apoio social que têm sido infindavelmente debatidos. Mas ele poderia articular claramente a realidade que estamos a enfrentar, e não necessariamente pedir por "sacrifício", como faz o apelo comum, mas por algo maior e melhor: por bravura e espírito resoluto, por inteligência e resilência, por candura e generosidade – entre um povo há muito desabituado de consorciar-se com os melhores anjos da sua natureza. Ele já começou a dar o exemplo ao aparecer em público com as mangas da camisa enroladas para cima. A mudança que tem estado no ar este ano – da qual o sr. Obama tem falado muito – está a chegar numa dose maior do que todos esperavam. Espero que estejamos preparados para entender o programa.
[NR] Um falso problema: ao longo de toda a história do planeta Terra verificaram-se alterações climáticas, não há nada de novo quanto a isso.
Meu novo romance do futuro pós petrolífero, World Made by Hand, está disponível neste link.
O original encontra-se em jameshowardkunstler.typepad.com/ . Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .