Kafka tem um rival
O Foreign Office britânico anda a dar lições sobre direitos humanos
por John Pilger
Hoje (1 de Dezembro), um evento surrealista terá lugar no centro de Londres. O Foreign Office organiza um dia aberto para "sublinhar a importância dos Direitos Humanos no nosso trabalho como parte do 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem".
Haverão vários "palcos" e "painéis de discussão" e o ministro dos Negócios Estrangeiros, David Miliband, apresentará um prémio de Direitos Humanos. Será isto uma paródia? Não. O Ministério dos Negócios Estrangeiros quer elevar a nossa "consciência quanto a direitos humanos". Kafka e Heller [1] têm muitos imitadores.
Não haverá palco para os habitantes das Ilhas Chagos, os 2.000 cidadãos britânicos expulsos da sua terra natal no Índico, combatidos pelo governo de Miliband a fim de impedi-los de retornar ao que é agora uma base militar dos EUA e um suspeito centro de tortura da CIA. O Supremo Tribunal reiteradamente restaurou o direito humano fundamental dos ilhéus, a essência da Magna Carta, descrevendo as acções do Foreign Office como "escandalosas", "repugnantes" e "ilegais". Não importa. Os advogados de Miliband recusaram-se a desistir e foram salvos a 22 de Outubro pelos julgamentos politicamente transparentes de três membros da Câmara dos Lordes.
Não haverá palco para as vítimas da política sistemática britânica de exportar armas e equipamentos militares para dez dos 14 países mais pobres e exangues de África. No seu discurso de hoje, com a boa gente da Amnistia e da Save The Children a assistir, o que dirá Miliband a quem sofre a violência patrocinada pelos britânicos? Talvez mencione, como normalmente faz, a necessidade de "boa governação" em países longínquos, enquanto o seu próprio regime suprime uma investigação do Gabinete de Grandes Fraudes (Serious Fraud Office) aos negócios de 43 milhões de libras da BAE com a corrupta tirania na Arábia Saudita – com a qual, notou o ministro dos negócios estrangeiros Kim Howells em 2007, os britânicos têm "valores em comum".
Não haverá palco para os iraquianos cuja vida social, cultural e real foi esmagada por uma invasão não provocada, baseada em comprovadas mentiras. Será que o ministro pedirá desculpa pelas bombas de fragmentação que os britânicos têm espalhado, que ainda rebentam as pernas a crianças, ou pelo urânio empobrecido e outros produtos tóxicos que têm feito com que o cancro consuma vastas camadas populares do Sul do Iraque? Será que falará acerca do direito humano ao conhecimento e anunciará o desviar de uma parte dos milhares de milhões destinados a salvar o centro financeiro britânico, a City of London, para restaurar o que era um dos melhores sistemas escolares do Médio Oriente, obliterado como consequência da invasão anglo-americana, e para os museus e editoras e livrarias, e professores, historiadores, antropologistas e cirurgiões? Será que anunciará o envio de simples anestésicos e seringas para hospitais que antes tinham quase tudo e hoje nada têm, num país onde os governos britânicos, especialmente o seu, lideraram o bloqueio à ajuda humanitária, incluindo a proibição de Kim Howells à entrada de vacinas para proteger crianças de doenças para as quais há prevenção?
Não haverá palco para a gente de Gaza cuja maioria, segundo diz a Cruz Vermelha Internacional, está ameaçada de fome, em particular as crianças. Seguindo uma política de reduzir um milhão e meio de pessoas a uma existência Hobbesiana, os israelenses já cortaram a maioria dos suportes de vida. David Miliband esteve recentemente em Jerusalém, a uma curta distância de voo de helicóptero dos cativos de Gaza. Não foi lá e nada disse sobre os seus direitos humanos, preferindo palavras com duplo significado acerca de uma "trégua" entre o atormentador e as suas vítimas.
Não haverá palco para os sindicalistas, estudantes, jornalistas e defensores dos direitos humanos assassinados na Colômbia, um país onde as "forças de segurança" do governo, treinadas por britânicos e americanos, são responsáveis por 90 por cento das torturas, diz um novo estudo de um grupo de direitos humanos britânico, o Justice for Colombia. O ministério diz que está a "melhorar os direitos humanos do lado do militares e combatendo os tráfico de droga". O estudo não encontra qualquer evidência que isto se esteja a passar. Agentes colombianos implicados em homicídios são recebidos no Reino Unido para "seminários".
Não haverá palco para a história, para a nossa memória. Arquivados nas grandes bibliotecas britânicas e arquivos documentais, ficheiros oficiais desclassificados e libertados dizem a verdade acerca das políticas britânicas e Direitos Humanos, desde atrocidades oficialmente avalizadas em campos de concentração no Quénia colonial e o armamento do genocida general Suharto na Indonésia até ao fornecimento de armas biológicas a Saddam Hussein nos anos 80. Enquanto ouvimos o zumbido moralista de ex-militares "peritos em segurança" dizendo-nos o que pensar acerca dos terríveis eventos em Bombaim, podemos lembrar-nos do papel histórico britânico como parteiro do extremismo violento no Islão moderno, desde a ascensão da irmandade Moslem no Egipto nos anos 50 e a derrubada do governo liberal eleito democraticamente no Irão, ao armamento dos muhijadeen afegãos, Taliban em processo de formação, pelo MI6. O objectivo era, e continua a ser, a negação do nacionalismo a povos que lutam para ser livres, especialmente no Médio Oriente, onde o petróleo, diz um documento secreto do Ministério dos Negócios Estrangeiros de 1947, é "um prémio vital para qualquer potência interessada na influência e dominação mundial". Os direitos humanos estão quase totalmente ausentes desta memória oficial, ao contrário do medo de ser descoberto. A expulsão secreta dos habitantes das ilhas de Chagos, diz um memorando do Ministério dos Negócios Estrangeiros de 1964, "deve ser cronometrada de modo a atrair o mínimo de atenção e deve ter alguma cobertura lógica [de modo a não] levantar suspeitas acerca do seu propósito."
Como é que se perpetua este país das maravilhas? Os media desempenham o seu papel histórico, seguindo a linha do poder, censurando por omissão. Roland Challis, que era o enviado especial da BBC no Sudeste Asiático quando Suharto chacinava centenas de milhares de alegados comunistas nos anos 60, disse-me, "Foi um triunfo para a propaganda ocidental. As minhas fontes britânicas alegavam não saber o que se passava, mas sabiam… Os navios de guerra britânicos escoltaram um navio indonésio cheio de soldados através dos Estreitos de Malaca para que eles pudessem tomar parte nesse terrível holocausto".
Hoje, a propaganda das relações públicas veste-se como intelectual e promove o mesmo poder predatório britânico, enquanto procura fixar as fronteiras da discussão pública. Um relatório foi publicado na semana passada pelo Institute for Public Policy Research (IPPR), que se descreve como "o mais proeminente think tank progressista do Reino Unido". Tendo sido esvaziado do seu significado etimológico, o antes nobre termo "progressista" junta-se a "democracia" e "centro-esquerda" no rol de mentiras. Lord George Robertson, o novo falcão de guerra do New Labour, devoto do submarino Trident e antigo chefe da NATO, tem a sua assinatura na capa, junto com Paddy Ashdown, antigo vice-rei dos Balcãs. Confortavelmente baseado em clichés de gestão de crises, o relatório do IPPR ("Destinos Partilhados") é uma "chamada à acção" porque "estados fracos, corruptos e falhados tornaram-se maiores riscos de segurança que aqueles fortes e competitivos". Sem mencionar o terror dos estados ocidentais, a "chamada" é feita à NATO em África e à intervenção militar "se for considerado necessário".
Há uma concordância quanto à "percepção" de que a actual "intervenção" anglo-americana em países muçulmanos potencia o terrorismo no Reino Unido: é isso que é ofuscantemente óbvio para a maioria das pessoas. Em Fevereiro de 2003, quase 80 por cento dos londrinos sondados acreditava que um ataque britânico ao Iraque "tornaria mais provável um ataque a Londres". Foi exactamente esta a advertência feita a Blair pelo Joint Intelligence Committee. A advertência continua a ser urgente enquanto "nós" continuamos a atacar os países de outras povos e a permitir que estes falsos campeões roubem os direitos humanos de todos nós.
[1] Joseph Heller: (1923-1999), escritor surrealista, autor de "Catch 22" (1961)
O artigo original encontra-se em Dissident Voice. O artigo traduzido encontra-se em Resistir.info.