A vida nos acampamentos das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia)
por Néstor Kohan/ CCB Argentina
Entrevista ao historiador Ezequiel Rodríguez Labriego
Um dos principais feitos da fabricação industrial do consenso consiste no cancelamento a priori de toda dissidência radical. Trata-se de eliminar de antemão qualquer pensamento crítico e até a menor possibilidade de oposição séria ao sistema.
Mesclando em uma mesma colagem as imagens mais obscuras das novelas anti-utópicas clássicas (Um mondo feliz de Aldous Huxley, 1984 de Goerge Orwell ou Fahrenheit 451 de Ray Bradbury) com as histórias mais truculentas de terror infantil, as usinas comunicacionais do imperialismo têm fabricado um novo fantasma, macabro, tenebroso e ameaçador. Trata-se do suposto “narco-terrorismo”, que ocupou o lugar do antigo espantalho conhecido como “conspiração comunista”, típico do cinema da guerra fria.
Assim foi fabricado um novo demônio, completamente amorfo, onipresente, incomensurável, impensável e, inclusive, inimaginável.
Esse novo Lúcifes é o que persegue a caça às bruxas contemporânea, esporte preferido do neo-macartismo, pois assume diversos nomes e rostos, segundo a conveniência do momento. Um dos mais célebres é o das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP), inimigo mortífero em todas as hipóteses de conflito que manejam os yankees.
Por trás das telas desinformativas do poder, além do labirinto de manipulação dos cabos, agências e comunicados oficiais, do outro lado das operações da guerra psicológica, campanhas midiáticas e totalitarismo cultural, como serão realmente as FARC-EP? Que rosto terão na intimidade estes guerrilheiros sem documento, sem rastro e sem nome? Que costumes têm em sua vida cotidiana? O que sonham a cada noite, cada manhã, cada aniversário e cada dia 31 de dezembro?
Para imaginar a vida das guerrilhas, contamos com aqueles relatos épicos do Che Guevara (Passagens da guerra revolucionária), de Omar Cabezas (A montanha é algo mais que uma imensa estepe verde) ou o já clássico de Jorge Ricardo Masetti (Os que lutam e os que choram). Trata-se de histórias, em todos esses casos, sobre Cuba e Nicarágua. Não obstante, até onde sabemos, excetuando duas excelentes biografias de Manuel Marulanda escritas pelo historiador Arturo Alape (As vidas de Pedro Antonio Marin, Os sonhos e as montanhas) e os diários de campanha de Jacobo Arenas e Manuel Marulanda (que são ilustrativos do início da insurgência), a revolução colombiana não possui relatos que mostrem o mundo cotidiano da insurgência. As FARC esperam essas histórias, tarefa que começou a ser realizada no cinema pelo recente filme Guerrillera Girl (do diretor norueguês Frank Piasecki Poulsen, disponível na internet). Excelente documentário que dá um rosto cotidiano ao espectro itinerante e clandestino da guerrilha. Fantasma temido, odiado ou admirado, mas sempre desconhecido.
O historiador uruguaio Ezequiel Rodrígues Labriego teve, este ano, o privilégio de conhecer ao vivo e diretamente a vida cotidiana das guerrilhas colombianas, o suposto “monstro”, segundo o imaginário inquisitório do Pentágono, a CNN, Uribe e a extrema direita troglodita.
Junto a um sacerdote francês, dois sociólogos italianos e uma jornalista norte-americana, Rodríguez Labriego visitou nas montanhas da Colômbia os acampamentos das FARC. Ali pôde observar, dialogar e conviver com os combatentes deste exército do povo que, em pleno século XXI segue incomodando o imperialismo yankee e suas prepotentes bases militares com as bandeiras intrínsecas de Simón Bolívar, Che Guevara e Manuel Marulanda.
Em seguida reproduzimos parte da entrevista que fizemos a Rodríguez Labriego, focalizando o interesse nos aspectos mais cotidianos de sua experiência, aqueles que humanizam a todos e todas combatentes comunistas, os resgatam do retrato gótico e monstruoso que a CIA debulhou para demonizá-los, devolvendo-os ao simples, porém belo, terreno da construção do homem novo e a mulher nova do século XXI.
A entrevista ao historiador uruguaio, que muito amavelmente respondeu a nossas perguntas, foi realizada na Universidade do Rio de Janeiro em 28 de outubro de 2008, ocasião em que tivemos a honra de conhecer e dialogar com a historiadora brasileira Anita Prestes, filha de outro legendário combatente revolucionário da América Latina, Luis Carlos Prestes.
Néstor Kohan: Por que decidiu ir conhecer as FARC-EP?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Por múltiplas razões, mas principalmente por duas. Em primeiro lugar, por uma curiosidade que me surgiu ao ler o livro Rebeldes do célebre historiador marxista britânico Eric Hobsbawm, que analisa diversas rebeldias camponesas e disse, referindo-se às FARC (Hobsbawm as conheceu em primeira mão), que o caso colombiano constitui “a maior mobilização camponesa do hemisfério ocidental”. Em segundo lugar, porque me surpreende, me incomoda e me indigna o brutal silêncio –muitas vezes próximo à cumplicidade com o poder- que hoje rodeia e encobre a Colômbia. Então me pergunto: devemos dar crédito de veracidade ao terrorista e guerreirista Uribe? Vamos acreditar nele? Vamos calar a boca sobre o genocídio que hoje padece o povo colombiano? Por estas razões, algumas históricas, outras presentes, queria conhecer de forma direta as FARC, sem “filtros” macartistas. Por isso fui. Lhe asseguro que não me arrependo.
Néstor Kohan: Como viajou até os acampamentos?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Bom, através de uma longa travessia. Não é fácil chegar. Vários dias de ônibus, caminhão, camionete, lombo de mula, muitos penhascos, encostas íngremes, vales agressivos, travessias de riachos e finalmente caminhadas na montanha, no barro e debaixo de chuva, enquanto os combatentes que nos guiavam iam contando histórias sobre a luta de Simón Bolívar. Era realmente emocionante sentir que Bolívar nos acompanhava, que não era uma figura meramente decorativa ou um frio objeto de estudo, como acontece na Academia quando se estuda a história da América Latina.
Néstor Kohan: Que imagem esses jovens guerrilheiros tinham de Bolívar?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Tive a impressão que eles, os jovens das FARC, sentia Bolívar como mais um de seus companheiros, como maus um de seus próprios combatentes. Eles imaginavam, por exemplo, que Bolívar, apesar de aparecer em todas as estátuas das praças esculpido ou retratado a cavalo e com um gesto napoleônico, de conquistador, na realidade andaria de mula, já que nessas montanhas onde lutou o Libertador, o cavalo mal consegue marchar enquanto a nobre mula, talvez menos elegante e majestosa, pode subir e descer facilmente as ríspidas, molhadas e lamacentas encostas. Se perguntavam também se Bolívar gostava de dançar, se escaparia para ver mulheres (diziam, rindo, que quando o Libertador ia ver a noiva não podia ir na mula, tinha que ir a cavalo, para ter mais ‘presença’ como galã [Risos]). Também se perguntavam se Bolívar, por acaso, não teria a pele escura e o cabelo crespo, em lugar de parecer um branquelo... Para estes combatentes, Bolívar era um ser humano de carne e osso, com uma vida cotidiana como qualquer um deles, não um pedaço de bronze, não uma estátua morta e petrificada.
Néstor Kohan: Como foi a chegada?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Todos cheios de barro! [Risos]. Caímos diversas vezes. Os combatentes nos ajudaram solidariamente a nos levantar. Tratavam de nos ajudar. Nos apoiavam. Ali descobrimos um detalhe prático, nenhum calçado da cidade serve para esses lugares. Os revolucionários insurgentes estão acostumados a caminhar por lamaçais de 20 ou 30 centímetros de barro como algo “normal”. Como chovia muitíssimo, nos emprestaram capas impermeáveis. Foi então que escutei a primeira de muitas piadas. Chamaram a mim e o sacerdote francês de “Batman e Robin da primeira geração, antes que inventassem o automóvel, quando ainda andavam de mula” [Risos]. O primeiro vínculo com os guerrilheiros comunistas abriu-se então, com uma piada. Outra piada marcou o final da experiência. Quando fomos nos despedir, nos disseram: “Esta terra os saúda e despede-se com orgulho... Não é qualquer um que a dá tantos beijos com a bunda...”, fazendo alusão a todas as nossas quedas no barro [Risos]. O humor esteve na ordem do dia o tempo todo.
Néstor Kohan: Então o pessoal das FARC não estavam derrotado, desmoralizado e cabisbaixo?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Não! Pelo contrário! Os encontrei alegres, com uma moral muito alta, com uma convicção muito forte e seguros de que vão triunfar. Não era uma pose ou uma encenação. Dava para ver que estavam seguros. Por isso todo o humor e as piadas (entre eles e com os visitantes, sempre em um tom de cordialidade, de amizade solidária e camaradagem). Se estivessem derrotados, como o presidente Uribe e a inteligência militar colombiana apresentam, assim como os grandes meios de comunicação que difundem os comunicados das Forças Armadas e sua visão da guerra, se eles se sentissem vencidos, pensando que vão ser aniquilados –sobretudo por um exército tão selvagem e impiedoso como o colombiano, assessorado e dirigido no terreno pelos próprios yankees- não ficariam fazendo graça e contando piadas. Isso é óbvio, certo? O humor expressa algo. Acredito que é produto de uma moral combativa alta e de uma forte convicção no triunfo popular.
Néstor Kohan: O acesso aos acampamentos era direto?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Não, havia que dar antes muitas voltas. Mas o que mais me surpreendeu foi o contato prévio com as populações que os apóiam e sustentam. A propaganda oficial, da qual fazem eco os grandes meios de comunicação, os pintam como bandoleiros, como um grupo de foragidos armados e sem ideologia, isolados do povo ou presos no tempo. Eu vi outra coisa bem diferente. Não li, não me contaram, vi com meus próprios olhos. Gente comum dos povoados e vilas que os apóiam, trabalhadores em sua maioria, camponeses, vestidos com roupa muito humilde. Mulheres do povo com muitos filhos (lembro, por exemplo, de uma senhora, muito jovem, muito humilde, com uma mula onde iam três crianças e ela ia a pé grávida de um quarto filho...). Toda essa gente dos povoados, civis, falam deles, dos combatentes das FARC e de seus acampamentos na montanha, dizendo “lá em cima”, “o pessoal lá de cima”, “os camaradas”... (na Colômbia quase não se utiliza a palavra “companheiro”, todo o mundo se chama “camarada”, que é muito mais comum”. Essas expressões eram referências elípticas aos acampamentos na montanha das FARC. As pessoas dos povoados lhes dão comida, cigarros, várias coisas. Um grupo revolucionário que não tivesse apoio popular não contaria com essa simpatia e essa colaboração. Por isso os militares e paramilitares da Colômbia assassinam tantos civis, porque estes últimos apóiam a guerrilha. É evidente o apoio que dão às FARC. Eu vi. As FARC e suas frentes de trabalho político fazem trabalho social com as pessoas, com as populações: vacinam os guris (quer dizer, as crianças), constroem escolas, postos de saúde, estradas, pequenas represas para os rios, registram as crianças que ainda não possuem documentos. Em síntese, vi muitas famílias e muitas crianças rodeando as FARC. Definitivamente é uma guerrilha popular.
Néstor Kohan: Como os receberam nos acampamentos?
Ezequiel Rodrígues Labriego: O primeiro contato foi com os postos de guarda. Tínhamos que caminhar olhando para o chão de barro, para que não tropeçássemos e, ao levantar os olhos um momento, surpreendentemente nos encontrávamos com os guardas do acampamento a meio metro [Risos]. Cuidavam do acampamento contra as incursões do Exército. O primeiro que dissemos foi “não podemos cumprimentá-los porque estamos todos cheios de barro” [Risos]. Cruzamos com eles sem tê-los visto. Logo seguimos subindo e chegamos ao posto de comando. Ali os comandantes nos receberam. Foram muito amáveis. Nos sentamos ao redor de uma mesa cheia de livros. Logo trouxeram a comida. Haviam muitos livros e, repito, muito bom humor. Riam o tempo todo, o que me surpreendeu. Eu esperava encontrar gente muito séria, como nos filmes e me encontrei com algo muito diferente. Muitas piadas. Ao longo de toda essa experiência, em várias ocasiões, quando fazia perguntas tinha que perguntar várias vezes, porque é certo que as primeiras respostas eram piadas. Não demoramos para nos acostumar, também começamos a devolver as piadas (ainda que demorasse um pouco para os visitantes europeus compreenderem as ironias). Nada mais distante desses combatentes, desses garotos e garotas, que a tristeza, a sensação de derrota ou desânimo.
Néstor Kohan: Chegaram de noite ou de dia?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Era plena noite, não se via nada. A selva é muito escura. As árvores são altas, muito altas. A vegetação é espessa. Às vezes tem até neblina.
Néstor Kohan: Tinha iluminação com tochas ou velas, como fazemos no campo, onde não há luz elétrica?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Não! [Risos]. É muito diferente do campo que nós estamos acostumados a ver. Havia pouquíssima luz, porque os aviões do exército colombiano contam com uma nova tecnologia militar proporcionada pelos Estados Unidos. Essa nova tecnologia de controle, que facilita a repressão do exército, está formada pelo uso de satélite, de globos espiões e até aviões não-tripulados, que contam com instrumentos que detectam em tempo real concentrações de fumaça, calos e luz na selva e assim, automaticamente, vêm os aviões militares e começam a bombardear. Portanto, de noite há pouquíssima luz. Mas nesse primeiro encontro vimos os rostos. Havia um pequeno fogo e lanternas. De repente um combatente alertou “Avião...” e todo mundo apaga a lanterna. O acampamento inteiro fica no escuro e não se vê absolutamente nada. E mesmo ali aparece uma piada nova. Como na guerrilha não se sabe se o barulho é de um avião comercial ou avião militar, ou seja, bombardeiros das forças armadas, simplesmente se referem ao avião como “o jato”. Então depois especificam, rindo, que se trata do “jato... o cheio de bombas...”. Um humor muito apurado.
Néstor Kohan: Escutavam música?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Na realidade havia muito silêncio, escutava-se apenas os sons da selva, os grilos, a chuva, as folhas que se moviam quando ventava, às vezes o correr da água de um rio, e sempre escutavam as notícias. O que acontece é que “a guerrilheirada”, como eles se referem às pessoas da guerrilha, estavam escutando as notícias... Ainda que nos fizessem escutar música das FARC, escrita e interpretada pela própria guerrilha, com letras revolucionárias e música em diferentes ritmos: rock, merengue, tango, salsa, ballenato e etc. A escutamos em um computador. Aos domingos há música, interpretada por eles. Os jovens tocam violão, sanfona e também cantam.
Néstor Kohan: Quais foram os primeiros relatos e as primeiras conversas?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Obviamente, tudo começou com diálogos políticos. A situação na Colômbia, a violação aos direitos humanos de Uribe sobre a qual ninguém fala, quando semana a semana são seqüestrados e assassinados dirigentes sindicais, camponeses, padres, monges, estudantes, etc. Também se falou do terrível tratamento que recebem os combatentes capturados pelo exército, a necessidade da solidariedade internacional, os debates atuais do marxismo, etc. Mas na hora de dormir também aparecem outros tipos de histórias. Histórias de ursos, tigres (os tigres que comem os animais domésticos das pessoas), as cobrinhas... Por sorte, só depois fiquei sabendo que o que eles, os colombianos, chamam de “cobrinhas” são as víboras. Eu pensei que falavam de cobrinhas pequenas de 10, 15 ou 20 centímetros de comprimento e, afinal de contas, falavam de cobras de até dois ou três metros [Risos]. Menos mal que só descobri isso na hora de ir embora! [Risos]. Me contaram uma história, uma das tantas histórias dessa oralidade mágica onde a selva cobra a vida desses habitantes das montanhas, sobre um guerrilheiro que capturava as víboras com a mão, falava com elas e não as matava, as soltava. Então as cobras iam serpenteando... Porque estavam humilhadas! Moviam-se assim pela humilhação diante do homem, do guerrilheiro, do camponês [Risos]. Nós começamos a brincar, esperando que as familiares dessa não viessem se vingar por sua parente... [Risos]. Também nos contavam a história de outro guerrilheiro que falava com os bichos do bosque, o chamavam carinhosamente de “o louco”. Parece que era um dos melhores guerrilheiros, por sua mística, por sua entrega e sua disciplina, mas riam quando contavam que era “louco” porque não parava um segundo de contar piadas e falava com os animais do bosque.
Néstor Kohan: Onde dormiam?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Em barracas. Haviam camas de bambu, madeira, folhas. Haviam colchões. Plásticos para se cubrir da chuva. Barro. Devo destacar o esforço que essa gente fazia para que os convidados se sentissem acomodados. A chuva, por momentos, era torrencial. Não passou um dia sequer sem chover nos acampamentos. O barro era onipresente. Sentia-se o tempo todo o aroma da terra molhada no meio da chuva ou da neblina. Nesse panorama, se esforçavam para brindar nos com a maior comodidade possível. Nos contaram que os guerrilheiros devem dormir com grande parte de suas coisas preparadas caso se apresente uma situação de “ordem pública”, combate ou assédio militar iminente.
Néstor Kohan: A que hora se levantavam?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Cedíssimo. Antes das 5 am. A vida na montanha e no campo é muito diferente da cidade. Tudo começa antes e termina antes. Tanto que teve um dia em que os comandantes queriam ler, discutir e debater as teses de um livro que falava sobre a Colômbia e a América Latina, parece que era muito polêmico, e se levantaram ás 3 da manhã. Ali tudo se escuta. Desde longe,. Onde estava nossa barraca, escutávamos o debate. Deve-se estar muito politizado e ter muita vontade de polemizar para acordar às 3 da manha... para debater um livro! Não é verdade? Nada mais longe da realidade que eu vivi do que a imagem oficial de “bandoleiros narcotraficantes sem ideologia”.
Néstor Kohan: O que comiam no café da manhã?
Ezequiel Rodrígues Labriego: A primeira coisa que tomam, cerca das 5 da manhã, é um “tinto”. Não é vinho! [ Risos] Eles chamam de o café negro de “tinto”. Mais tarde, por volta das 7 am, comem muita comida, arepas (comida feita com farinha de milho), ovos, etc. Muita comida, não apenas para os convidados ou as visitas internacionais. Um velho guerrilheiro nos explicou que as FARC brindam aos seus combatentes com boa alimentação, entre outras coisas, para prevenir doenças. Um guerrilheiro mal alimentado pode ficar doente mais fácil. Inclusive, em termos econômicos, é melhor comer bem que ficar doente. Cada combatente tem também uma escova de dentes e sua pasta para prevenir enfermidades na boca.
Néstor Kohan: Como é a vida durante o dia? Praticavam tiro ou pontaria o tempo todo?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Não, são atiradores muito bons (os militares chamavam o comandante Marulanda de ‘Tirofijo’, ou seja, ‘tiro certeiro’) mas, na realidade, a maior parte do dia, todo o acampamento é um gigantesco coletivo de trabalho. Trabalham muito durante o dia! Há grupos de trabalho por esquadra de combate. Cortam lenha, serram, trabalham a madeira, lavam cozinham, constroem, transportam distintos materiais. Os acampamentos se parecem mais com enormes coletivos de trabalhadores do que qualquer outra coisa. Por isso nos explicavam a necessidade de uma boa alimentação: muito trabalho físico. As mulheres trabalhavam ao lado dos homens, em todos os serviços. Na marcha pela selva, as mulheres e os homens carregam mochilas de 30 quilos aproximadamente (eles medem em libras) com roupa, armas, munição, comida, etc.
Néstor Kohan: Haviam mulheres na guerrilha?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Muitas! Carregavam armas longas (diversos tipos de fuzis), uniforme das FARC e, ao mesmo tempo, lixas de unha, espelhos e esmalte. Elas levavam as mesmas cargas que os homens e todo mundo trabalhava por igual.
Néstor Kohan: Quem cozinhava?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Haviam várias cozinhas, com fornos fabricados por eles mesmos, ao estilo vietnamita ou cubano, segundo nos explicavam. Eles os denominavam “ranchas”. Vi gente cozinhando, tanto mulheres como homens, ambos por igual.
Néstor Kohan: Todos se vestiam igual?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Sim, com uniforme verde-oliva e as insígnias das FARC-EP. Tinham todos, homens e mulheres, um asseio tremendo. Se nos viam sujos de barro por conta das caminhadas, faziam piadas, sugerindo que trocássemos de roupa. Cada combatente tem mais de um uniforme, que eles mesmos confeccionam. A limpeza dos combatentes está regulamentada. No meio desse lamaçal, tudo estava limpo. Incrível! De alguma forma sentiam-se orgulhosos, se minha percepção não me enganou, de saber caminhar longas jornadas de barro sem se sujar. Sentiam-se de estarem assim, limpos no meio da selva. Inclusive nos perguntavam com ironia porque estávamos cheios de barro, dizendo: “Vocês não estão acostumados a caminhar no barro, certo?” Ainda que, ao mesmo tempo, com a maior naturalidade, alguns combatentes também nos perguntavam: “É verdade que é a primeira vez que visitam acampamentos guerrilheiros?”... como se fosse a coisa mais normal do mundo... [Risos]. Vestiam-se igual, mas as pessoas eram as mais variadas possíveis. Vimos combatentes brancos, mestiços, indígenas, afro descendentes, homens e mulheres. Dava para perceber que eram integrados, em um coletivo integrado. Por exemplo, vi gente branca cozinhando e servindo gente mestiça ou afro descendente. Tudo ao contrário do capitalismo racista e da discriminação a qual nossa sociedade nos tem acostumados.
Néstor Kohan: Durante o dia todo só trabalhavam?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Não, além de comer, trabalhar e descansar, também vi reuniões e discussões que transcorriam a tarde. Essas reuniões eram chamadas “a hora cultural”. Na realidade, duravam uma hora e meia ou duas. Juntavam-se e escutavam as notícias, primeiro, para analisá-las depois. Logo debatem em uma espécie de assembléia sobre a notícia do dia.
Néstor Kohan: Notícias de que tipo?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Notícias da Colômbia e da América Latina, principalmente. Mas também de outras partes do mundo.
Néstor Kohan: De onde obtém as notícias na selva e em plena montanha?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Da rádio e da TV. Assistem TV em uma hora do dia. Principalmente noticiários, como TELESUR. Também obtém notícias de Caracol, etc. mas também viam uma série de TV, jogos de futebol, etc. Lembro uma das tantas piadas que faziam: “Fulano é um leninista estrito, porque primeiro de tudo vem o partido... o partido de futebol” [Risos]. Esta pessoa não perdia um jogo por nada no mundo.
Néstor Kohan: Como debatiam?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Por grupos, por esquadras. As esquadras são as menores estruturas de combate, mas, ao mesmo tempo, são células políticas [na tradição do pensamento leninista, as “células” constituem-se na menor forma de organização de todo partido político] . O interessante é que cada esquadra tem seu comandante mas também possui seu secretário político. Os dois cargos não podem ser exercidos pela mesma pessoa. Dessa maneira fica garantida a democracia interna nas FARC e a possibilidade de debate. Então nas horas culturais dedicadas à informação, à educação e ao debate, cada esquadra é responsável por transmitir uma notícia. Quando todas as esquadras disserem a sua, começa o debate coletivo sobre as notícias. Ali elas são analisadas criticamente. Todos e todas falam, a palavra circula. Participam desde os que tem melhor oratória, mais fluida, até aqueles que penam mais em falar ou ler em público. O chamativo é que falam e debatem no escuro ou com pouquíssima luz. Ao presenciar essas cenas vêm à memória os relatos do marxista norte-americano John Reed quando escrevia a história da revolução bolchevique. John Reed, aquele jornalista dos EUA, se espantava pelo fato dos soldados bolcheviques de Lenin, ainda que estivessem com fome e no meio da guerra, se desesperavam por receber notícias ou livros no front de batalha... As horas culturais na selva colombiana me fizeram lembrar aquele livro.
Néstor Kohan: Por que as horas culturais aconteciam no escuro?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Pela possibilidade de bombardeios dos aviões militares. A ausência de luz estava destinada a esconder dos aviões as posições dos acampamentos guerrilheiros. Os combatentes nos contavam que essas horas culturais antes eram feitas com toda a luz, dando para ver as caras, mas como Uribe recrudesceu a guerra –tudo em nome da “paz” e da “democracia”... – têm recebido ultimamente tecnologia militar yankee de última geração, dedicada a aniquilar a insurgência com o chamado “Plano Patriota”, então já não se podia continuar desenvolvendo essas atividades com luz. Essa tecnologia militar yankee inclui globos espiões ou informação por satélite, destinada a detectar concentrações de luz, fumaça ou calor na selva. Isso motiva os debates no escuro. É muito raro para alguém que vive na cidade assistir a essa espécie de assembléias no escuro, no meio do barro, onde se discute a informação de conjuntura. É um sacrifício muito grande viver assim! Mas todo mundo participa com entusiasmo, com “mística”, com alegria nas discussões. O que conheci é, realmente, uma força político-militar muito informada, muito politizada e muito atualizada no dia a dia.
Néstor Kohan: Não são então uns loucos soltos, perdidos na selva, que não foram enterrados quando caiu o Muro de Berlim...
Ezequiel Rodrígues Labriego: [Risos] Não! Estão muito, mas muito informados mesmo. E não apenas da Colômbia, mas também de outros países. Recebem visitas. Conversam sobre a luta popular de outros países. São internacionalistas convencidos. Além do que, a maioria dos combatentes que conheci ingressou nas FARC após a queda do Muro de Berlim. Não são “dinossauros nostálgicos”. São marxistas leninistas, guevaristas e bolivarianos, com um projeto político atual, pensado para a América Latina no século XXI. Este projeto bolivariano não está pensado apenas para a Colômbia, mas para a Grã - Colômbia e a Pátria Grande, ou seja, para toda a América Latina. As FARC constituem uma organização guerrilheira muito conectada com o mundo.
Néstor Kohan: Não haviam diferenças de formação entre seus integrantes?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Na verdade, pelo tempo que passei não poderia afirmar. Mas acredito que sim. Haviam trabalhadores, camponeses, estudantes. Alguns tinham oratória fluida, outros custavam a ler em voz alta. Mas todos e todas participavam por igual. A palavra era rotativa! Até os mais tímidos tinham que falar. Os papéis de organização das “horas culturais” (espécie de assembléias culturais) trocavam e se alternavam todos os dias. Sinceramente, os vi muito informado e muito interessados no que acontecia na Colômbia (por exemplo as mobilizações urbanas, crise política, etc.) e em outros países.
Néstor Kohan: Isso se referindo aos combatentes. E os comandantes?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Bom, devo reconhecer que me surpreenderam. Ainda que tivesse lido a historiografia sobre as guerrilhas e tenha entrevistado alguma vez dirigentes políticos e guerrilheiros de outros países, estes comandantes me fizeram rir muito [Risos]. Como já te contei, viviam fazendo piadas, entre eles e com os visitantes (os visitantes europeus demoravam um pouco para captar as piadas, mas também contavam algumas). Além disso, discutiam poesia e literatura. Estavam metidos em uma discussão, entre eles, sobre a obra e o pensamento do escritor Vargas Vila [modernista, da geração de Rubén Dario]. Na mesa de comando tinham a Crítica da razão pura de Kant!... Ali também vi livros do poeta e revolucionário salvadorenho Roque Dalton, escutei conversas sobre Mariátegui, Nietzche, Habermas, os manuais soviéticos de Konstantinov, polêmicas sobre Saramago, entre outros. Os escutei conversar também, com erudição e devoção sobre Simón Bolívar, se morreu de morte natural ou se foi morto. Também falavam sobre o pensamento de Che Guevara. Me pareceu, em suma, gente muito instruída, muito lida e preparada. Sobretudo muito sensível. Inclusive, quando um dos visitantes perguntou sobre as recordações sobre o comandante Marulanda, percebi uma lágrima rodando por aí. Também vi rostos de nojo, indignação e muita raiva quando se falavam dos crimes dos “paracos” (os paramilitares colombianos), o uso que fazem da moto-serra para mutilar gente, a tortura, o aniquilamento de dirigentes populares, indígenas, sindicais, camponeses, jovens estudantes. Um dos comandantes que conheci, de evidente origem camponesa, tinha seis irmãos mortos. Ao conhecer esse comandante camponês, antigo lugar-tenente de Marulanda, recordamos os relatos histográficos sobre a guerra civil e a revolução da Espanha, com seus generais operários e camponeses. Mas em todas as conversas predominava o humor, as piadas e a falta de cerimônia. Sobre todas as coisas, muita ironia e muito humor. Não é, por acaso, o humor o melhor gesto de saúde mental, imprescindível para levar adiante qualquer luta radical em condições tão difíceis?
Néstor Kohan: Como se levava a vida na selva?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Era difícil. Muito sacrifício! Apesar de ninguém se queixar e todo mundo encará-lo com “naturalidade”, esta gente vive com muito sacrifício. Em primeiro lugar, nuvens inteiras e permanentes de mosquitos. Complicado viver assim todos os dias, certo? Eles o chamam “a praga”. Diziam, por exemplo, “hoje há muita praga”, como quem diz “está nublado”, com naturalidade. Nas zonas onde não há tantos mosquitos...tem carrapatos! Nesses outros lugares também há vespas. Depois estão as víboras... Enfim, a vida das guerrilhas das FARC é uma vida tremendamente abnegada e sacrificada. Só pode ser encarada, eu imagino, se houver um projeto político claro, realista e viável, que lhe dê sentido e se tenha intimamente fé no triunfo. Senão, não entendo como poderiam viver assim cotidianamente. As FARC estão certas de que vão vencer.
Néstor Kohan: Como as pessoas fazem para ir ao banheiro?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Fazendo as necessidades fisiológicas em um poço (homens e mulheres), rodeado de folhas, sem teto, no meio da chuva permanente... Dizem que as FARC vivem como “magnatas”, cheios de luxo e dólares, e como “milionários narcos”... Por favor! Que infâmia! Te asseguro que tudo isso não passa de uma mentirosa e absurda propaganda militar, destinada a deslegitimá-los e isolá-los de possíveis apoios, seguramente elaborada pelos assessores em guerra psicológica dos yankees.
Néstor Kohan: Que balanço geral você faz de tudo o que viu e conheceu nos acampamentos das FARC-EP?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Quando me lembro do que conhecemos nos acampamentos, penso em tanto acadêmico medíocre bancado por alguma ONG, ou nesses jornalistas ignorantes pagos pelos grandes monopólios, que vivem insultando e depreciando estes jovens guerrilheiros e guerrilheiras, afirmando que são “narcos” e não sei quantas outras besteiras do tipo. Me causa muita indignação ver esses submissos e medíocres caluniarem as FARC. Entendo se alguém não compartilha da estratégia política da insurgência comunista e bolivariana. É lógico e compreensível. Cada um tem direito a seu ponto de vista e a opinar a respeito. Mas me parece que, qualquer um que opine, deveria antes tirar o chapéu. Ou seja, falar com sumo RESPEITO [Rodríguez Labriego faz o gesto para que sublinhe a palavra] diante de tanta dignidade, diante de tanta abnegação, diante de tanto sacrifício.
Como conclusão pessoal, queria enfatizar o tremendo RESPEITO, a sincera admiração que sinto e que me geram estas pessoas, as pessoas das FARC. Os vi muito sérios, muito esforçados, principalmente muito convencidos da causa do socialismo. Não apenas do socialismo na Colômbia, mas em toda a Pátria Grande latino-americana e no mundo. Me parece que necessitam de muita solidariedade internacional. Além das anedotas ou as impressões, acredito que isso seja o fundamental. A solidariedade.
Néstor Kohan: Por que acredita que se fala tão pouco de Colômbia? Por que pensa que a esquerda mundial hesita em levantar como própria a bandeira insurgente das FARC?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Talvez por muitas causas. Em primeiro lugar, pela impressionante campanha macartista contra as FARC. A esquerda, reconheçamos, não permaneceu alheia nem à margem dos efeitos desse macartismo oficial que obriga a todos que se “afastem” das FARC (e outros grupos radicais) para obter um certificado de “boa conduta”. Não é verdade? Ou estou errado? Em segundo lugar, as FARC e o Partido Comunista Clandestino da Colômbia (PC3 ou PCCC) marcam uma continuidade com a esquerda revolucionária de outras décadas, mantendo a centralidade da luta pelo poder, apesar de várias décadas de domínio pós-moderno e/ou social-democrata. Não se coloca a Colômbia no centro da agenda latino-americana (onde habitualmente se fala de Bolívia e Venezuela sem sequer mencionar a Colômbia) porque isso implicaria automaticamente em discutir a pertinência da luta armada. Apesar de milhares e milhares de mortos e desaparecidos, isso provoca medo. Muito medo. Devemos reconhecê-lo...eles têm medo, apesar de não o confessarem publicamente ou o encobrirem com falsas elaborações “teóricas”. Deve-se vencer de uma vez esse medo!
Então trata-se de recuperar a solidariedade. Não podemos abandoná-los! Não devemos continuar cedendo à chantagem macartista. Não podemos cair no silêncio cúmplice nem na comodidade da indiferença.
Néstor Kohan: Quando você fala de solidariedade, você se refere exclusivamente à esquerda?
Ezequiel Rodrígues Labriego: Não necessariamente. Não apenas a esquerda. As FARC se definem anti-imperialista e bolivarianos. O arco de solidariedade vai muito além da esquerda. Toda pessoa que se oponha ao guerreirismo de Uribe e a violação dos direitos humanos deveria se solidarizar. Da mesma forma que se apoiaram no sandinismo na Nicarágua, no FMLN em El Salvador, a Fidel e Che em Cuba, à URNG na Guatemala, ao zapatismo no México, ao MST no Brasil ou a Chávez na Venezuela. Hoje deve-se apoiar as FARC. As FARC são parte insubstituível e fundamental desse conjunto latino-americano. Não podemos continuar nos fazendo de distraídos frente à luta do povo colombiano. O apoio às FARC-EP deve estar na ordem do dia na esquerda latino-americana e mundial.